Publicado em 28 de outubro de 2025 às 16:34
Saboroso e menor que a unha de um polegar, o aviú, um microcamarão amazônico, aparece em águas rasas de igarapés apenas na época da cheia na região do rio Tapajós, no Pará. É quando o chef paraense Saulo Jennings o coloca temporariamente à mesa em pratos de seus concorridos restaurantes em cidades como Santarém e Belém.>
"A gente tem que valorizar tudo que a floresta nos dá na sua hora e na sua quantidade", explica Jennings.>
Foi com essa filosofia em mente que o paraense bateu o pé e virou notícia no mundo inteiro depois de ter se recusado a cozinhar o que ele diz ter sido um pedido por um menu vegano para 700 convidados no jantar oferecido pelo príncipe William no próximo dia 5 de novembro, no Rio de Janeiro, para o prêmio Earthshot.>
A organização do evento não confirma se foi mesmo feito um pedido de um menu vegano a Jennings. Fonte com conhecimento da organização do evento disse à BBC que os jantares do Earthshot sempre oferecem comida vegetariana — ou seja, que exclui carne de animais.>
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Um menu vegano não teria qualquer alimento de origem animal, como laticínios, ovos e mel.>
O prêmio ambiental global, fundado pelo príncipe, concede 1 milhão de libras (R$ 7,16 milhões) a cinco vencedores que oferecerem a melhor solução para alguns dos maiores desafios climáticos do mundo. >
Neste ano, pela primeira vez, o evento será realizado no Brasil, poucos dias antes do início da cúpula do clima das Nações Unidas, a COP30, em Belém, onde o príncipe britânico irá representar seu pai, o rei Charles 3º.>
Os jantares oferecidos pelo príncipe no Earthshot têm sempre comida vegetariana no menu, mas, ao ser convidado Jennings esperava apresentar sua especialidade ao mundo: os peixes amazônicos.>
Não foi o que aconteceu, segundo o chef. Ele diz que foi solicitado um menu vegano e enviou em resposta uma proposta de menu 80% sem produtos de origem animal e 20% com opções incluindo peixes.>
Diante da negativa em fazer a comida sem produtos de origem animal, diz o chef, o contrato não foi para frente.>
O príncipe não teria tido envolvimento na discussão sobre os pratos do menu. O chef Saulo Jennings confirma que as tratativas e exigências não foram feitas diretamente com o príncipe, mas com a organização do jantar no Rio.>
"A gente trabalha com vegano, mas eu não pensava que era excluindo a nossa matéria-prima, os peixes. A cultura alimentar do meu povo é tudo que vem da floresta e dos rios", disse Jennings em entrevista à BBC News Brasil em um dos seus restaurantes em Belém.>
O chef refuta a ideia de que uma culinária sem carne seria mais ecologicamente correta, ao menos na Amazônia. E, se os estrangeiros estão promovendo eventos para conhecer a realidade da floresta, eles precisam entender a cultura alimentar local.>
"Não ser vegano não significa que é não ser sustentável ou naturalista na Amazônia. Ser sustentável na Amazônia e ser naturalista é respeitar o que a Amazônia nos dá no seu tempo", diz Jennings.>
"Tem uma frase que digo: salada é do europeu. Não é pejorativo, é porque é característico do europeu. O nosso é farinha, peixe, açaí, tucupi.">
Natural de Santarém, no oeste do Pará, Jennings é um dos principais nomes da culinária amazônica no Brasil, tornando-se o primeiro embaixador gastronômico da ONU Turismo — a agência especializada das Nações Unidas que promove turismo sustentável.>
Ele começou sua empreitada gastronômica há 15 anos com um pequeno restaurante focado na culinária da região do rio Tapajós, onde fica Santarém.>
Hoje, além do restaurante Casa do Saulo em sua cidade natal, o chef comanda filiais disputadas em Belém, em São Paulo e no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, onde será realizado o evento do príncipe William.>
O carro-chefe de seus restaurantes é o pirarucu, peixe que já foi considerado ameaçado de extinção e tem hoje sua pesca e comércio controlados.>
A pesca dessa espécie, antes proibida devido à exploração predatória, hoje é considerada um exemplo de manejo sustentável.>
O modelo prevê a contagem dos animais e permite a captura de apenas uma parte deles, assegurando tanto a conservação das populações quanto a geração de renda para comunidades indígenas e ribeirinhas.>
Jennings participa de um projeto de manejo do pirarucu na região de Santarém — segundo ele, mais de mil famílias vivem hoje só do peixe que seus restaurantes compram. >
"Você tirar o peixe da natureza na sua hora certa, no tamanho certo e com respeito e com essa técnica com certeza é sustentável", diz ele.>
"E, para ser sustentável, eu tenho que comprar esse peixe.">
O episódio do jantar vegano oferecido pelo príncipe no Rio lembrou outra discussão que Saulo Jennings teve que enfrentar para participar dos banquetes a serem servidos na COP, em Belém, em novembro.>
O primeiro documento com abertura de licitações para os fornecedores de bebidas e comidas excluía alimentos essenciais da culinária paraense e amazônica, como açaí, tucupi, maniçoba (um ensopado com carnes à base a folha da mandioca triturada) e sucos de fruta in natura.>
A organização do evento os classificava como de "alto risco de contaminação". >
Após a repercussão negativa e o pronunciamento de chefs como Jennings, o governo federal interviu, e uma errata foi publicada autorizando a inclusão desses pratos.>
"Tudo na Amazônia é in natura. Mas nós temos nossos órgãos fiscalizadores, então foi aberto diálogo, todo mundo se juntou e resolveu conversar com o órgão que faz a licitação", lembra o chef.>
Essa primeira situação, diz Jennings, o deixou "sensível" a respeito de pedidos dos estrangeiros para não incluir alimentos amazônicos nos cardápios.>
"Quando chega um pedido desses [o jantar do Earthshot], a gente fica preocupado, porque, poxa, já estamos excluindo mais uma vez as nossas coisas. Então, pode ter sido sim uma forma de proteção minha", explica sobre sua recusa.>
Envolvido nas polêmicas, o chef diz levar como "missão" abrir a discussão sobre o respeito à cultura alimentar local, valorizando ingredientes locais.>
Jennings prevê que Belém vai conquistar o mundo durante a COP "pela barriga", assim como ele já fez com os britânicos em 2023.>
Na cerimônia em homenagem à coroação do rei Charles 3º na Embaixada do Reino Unido em Brasília, Jennings foi convidado para oferecer canapés aos convidados. >
Entre os pratos, fez um fish and chips, tradicional prato inglês que consiste em batata frita com tiras de peixe empanado. Na sua versão, o peixe, claro, foi o pirarucu.>
O chef agora espera encontrar o príncipe William no Rio e na capital paraense, para poder "contar como é a sustentabilidade do povo da Amazônia".>
"Acho que o diálogo é a melhor forma de a gente ter a paz no mundo. Inclusive, a comida, a boa mesa, eu acho que é onde tudo começa.">
Procurado pela BBC, o Palácio de Kensington, residência oficial do príncipe William, não se manifestou oficialmente sobre o menu do jantar do Earthshot e a recusa do chef paraense.>
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