Publicado em 21 de dezembro de 2025 às 17:44
A filha do homem considerado o maior abusador em série associado à Igreja da Inglaterra afirma que descobrir, enfim, a verdade sobre os ataques cometidos pelo pai contra cerca de 130 meninos foi chocante e horrível.>
Fiona Rugg, 47, é a filha mais nova do advogado e presidente de uma entidade beneficente cristã John Smyth QC, que morreu antes de ser levado à Justiça.>
No fim da década de 1970 e no início dos anos 1980, Smyth submeteu cerca de 130 meninos e jovens a abusos físicos e sexuais extremos, apresentados por ele como uma forma de disciplina espiritual.>
Desde então, Rugg, que hoje vive em Bristol, no Reino Unido, vem assimilando gradualmente a gravidade dos fatos, mas diz ter lidado com frequência com um sentimento que define como "vergonha por associação".>
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"Racionalmente, eu sei que não tenho nenhuma culpa, mas você se sente culpada por seu pai ser capaz de fazer isso com alguém e, além disso, ele nunca demonstrou arrependimento", afirmou.>
"Grande parte da história do meu pai e de como ele escapou da responsabilização envolveu encobrimento e engano. Mas eu quero tratar disso e trazer tudo à luz.">
O chamado Relatório Makin, publicado em 2024, concluiu que a condução do caso pela Igreja da Inglaterra representou um acobertamento das acusações contra Smyth. >
Um dos clérigos envolvidos chegou a admitir: "Achei que isso causaria um dano imenso à obra de Deus se viesse a público".>
Falando abertamente à BBC pela primeira vez, Rugg afirmou que compreender a dimensão dos abusos "chocantes" cometidos pelo pai a ajudou a se curar.>
"Eu o perdoei, mas isso não elimina a dor nem torna o que ele fez aceitável. Não me sinto mais presa a isso ou tão envergonhada, mas isso não diminui o horror de seus atos", disse.>
"Da parte dele, não houve qualquer sinal de arrependimento. Eu peço desculpas, em nome do meu pai, pelo que ele fez a esses meninos.">
Aviso: esta reportagem contém conteúdo sensível e referências a abuso infantil>
Rugg lembra uma infância opressiva, marcada pelo que descreve como uma "hipervigilância" constante diante dos humores imprevisíveis do pai.>
"Acho que o sentimento predominante era, na verdade, o medo, desde que me lembro", recorda. "Eu tinha medo perto do meu pai, ele era muito instável.">
"Ele ficava muito bravo, e havia essa sensação de instabilidade emocional, de andar pisando em ovos, tentando adivinhar qual seria o humor dele. Um sentimento de culpa, pois, quando era criança, eu não gostava do meu pai e às vezes o odiava.">
Rugg disse que seu pai a "ignorava completamente" quando ela era criança, a ponto de fazê-la duvidar do próprio julgamento sobre o caráter "instável" dele.>
"O que eu via era confuso para mim", disse. "Ele era tão assustador, bravo e cruel, tão difícil de enfrentar. Eu queria ficar o mais longe possível dele, mas o que eu via ao mesmo tempo eram pessoas que o adoravam.">
Enquanto Smyth ria e brincava ao ar livre com meninos e jovens sob o sol, ela observava tudo da janela, depois de ser orientada a manter distância por ser considerada uma "distração indesejada".>
"Nós vivíamos com um John Smyth completamente diferente daquele que ele apresentava ao mundo", explicou.>
"Quando você é criança, a conclusão natural é pensar: 'Ele deve estar certo, e o problema deve ser eu. Sou eu que não estou enxergando isso corretamente'.">
Smyth obteve acesso à escola Winchester College, na Inglaterra, em 1973 por meio da união cristã da escola e passou a abusar de alunos depois de convidá-los para almoços de domingo na casa de sua família.>
Ele obrigava as vítimas a se despir e a suportar violentas sessões de espancamento com uma vara em um galpão com isolamento acústico no terreno da residência dele, onde as agredia com tal intensidade que elas chegavam a sangrar.>
Cristão evangélico, Smyth enquadrava os abusos como uma forma de punição e arrependimento por supostos "pecados", como orgulho ou masturbação.>
Uma investigação interna feita pela Iwerne Trust revelou o escândalo em 1982, descrevendo os ataques como "prolíficos, brutais e horríveis", detalhando como oito dos meninos sofreram um total de 14 mil chicotadas.>
Mas, em vez de relatar às autoridades, representantes evangélicos de alto escalão da Igreja da Inglaterra facilitaram a saída silenciosa de Smyth do Reino Unido, o que permitiu que ele escapasse da Justiça por décadas.>
Quando a família foi levada para o Zimbábue, no sul da África, em 1984, Rugg diz que o pai apresentou a mudança como um "trabalho nobre", um sacrifício de sua "carreira brilhante" para atuar como um missionário.>
Mas o rastro de destruição o acompanhou pelo mundo todo. Pouco depois, ele passou a organizar acampamentos cristãos nos quais impunha a nudez a meninos e os espancava.>
No ano seguinte, ocorreu uma tragédia. Um adolescente de 16 anos chamado Guide Nyachuru foi encontrado morto em um dos acampamentos de Smyth menos de 12 horas após chegar ao local. O caso resultou em uma acusação de homicídio culposo, mas o processo acabou sendo arquivado.>
Quando voltou a morar na Inglaterra, aos 18 anos, Rugg passou a ter cada vez mais perguntas sobre o seu pai.>
"Às vezes, surgia o comentário de que eu era filha do meu pai, e eu via uma sombra passar pelo rosto das pessoas", recorda.>
"As reações não eram do tipo 'ah, que homem legal'. Era o oposto. Havia um silêncio absoluto. Parecia haver pouca conexão com o Reino Unido, o que sempre me pareceu estranho.">
Ela confrontou o pai com os rumores na véspera de Natal. A reação foi uma explosão de fúria: ele a acusou de ser "desleal" à família por ousar questionar sua integridade.>
"A reação dele foi tão extrema que eu me lembro de pensar: 'bom, agora eu sei com certeza'. Nunca há tanta fumaça sem fogo", afirmou.>
As denúncias sobre os abusos cometidos por Smyth vieram a público pela primeira vez em fevereiro de 2017, após uma investigação do veículo britânico Channel 4.>
Numa noite, Rugg ligou a televisão e se deparou com o rosto do pai estampado na tela, com o nome associado a crimes horrorosos.>
"Eram filhos jovens e vulneráveis, cujas vidas foram destruídas. Eu tenho um filho", acrescentou.>
"Por mais cruel que eu já o tivesse visto ser, não fazia ideia de que ele havia cometido tantos abusos criminosos. Foi horrível e chocante, mas, ao mesmo tempo, tudo passou a fazer sentido.">
"Toda a vida dele girava em torno de fazer 'a obra do Senhor'. Tudo era justificado pela sua fé cristã, e eu achava essa hipocrisia algo realmente repugnante.">
Em agosto de 2018, Smyth recebeu uma intimação da polícia de Hampshire para retornar à Inglaterra e prestar depoimento, sob ameaça de extradição.>
Oito dias depois, ele morreu de insuficiência cardíaca, aos 77 anos, sem jamais ter sido responsabilizado judicialmente pelos traumas infligidos aos meninos sob seus cuidados.>
Rugg afirmou que hoje consegue falar sobre o pai "sem amargura nem ódio" e que, finalmente, se sente em paz.>
"Na minha experiência, se você encara o que seu pai fez, é possível se curar e então perdoar", explicou.>
"Ainda há momentos de tristeza, mas já não sinto aquele nó no estômago quando penso nele, e isso é um avanço. Isso não é algo que eu precise carregar nem algo pelo qual eu deva ser controlada.">
"Deixou de ser algo que me foi imposto, para 'eu escolho o que fazer com isso'.">
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