Publicado em 3 de outubro de 2025 às 14:32
Rótulos e tampas de bebidas famosas, selos apresentados como se fossem da Receita Federal e garrafas de marcas de gin, vodka e whisky circulam livremente em grupos de Facebook, abertos ou fechados, dedicados à compra e venda desses itens, segundo apurou a BBC News Brasil.>
Os anúncios prometem entrega para "todo o Brasil" e venda em grande escala, de mihares de produtos. Entre os interessados estão perfis com nomes e logotipos de adegas de diferentes estados do país. Em apenas um desses grupos há mais de 10 mil participantes, além de outros menores e com acesso restrito.>
Um vendedor com DDD do Rio de Janeiro, por exemplo, oferece garrafas de um whisky de marca internacional por R$ 5 a R$ 10 a unidade, a depender da quantidade comprada. O valor é praticamente dez vezes o que se conseguiria em uma empresa de reciclagem, por exemplo.>
Em conversa por WhatsApp com a BBC, um vendedor de selos diz que o produto sai a R$ 1,30 por selo, e ofereceu um pacote com 1 mil unidades. Ele não confirmou a origem do material e não quis fornecer mais detalhes. >
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Nos últimos dias, autoridades brasileiras advertiram sobre um número atípico de casos de pessoas intoxicadas por metanol devido ao consumo de bebidas alcoólicas contaminadas com a substância — que pode provocar mortes e danos irreversíveis, como cegueira.>
Existe a suspeita de que bebidas possam ter sido adulteradas com metanol, já que muitos dos casos relatados são de pessoas que beberam em bares. As autoridades também trabalham com a hipótese de algum problema de contaminação no envase de garrafas.>
Em um dos grupos vistos pela BBC, um perfil de uma adega no interior do Mato Grosso do Sul diz procurar lacres e tampas de uma famosa marca de whisky — e, na mesma publicação, aparecem outros compradores interessados.>
Também são anunciadas garrafas descritas como "zero", além de caixas, tampas e adesivos. Os vendedores chegam a publicar vídeos para demonstrar a suposta qualidade dos produtos e oferecem envio pelos Correios.>
Na prática, esses grupos funcionam como uma feira livre virtual: vendedores e compradores expõem seus números de WhatsApp, com DDDs de vários estados. >
Em alguns casos, há moderação e é preciso pedir autorização para entrar. Em outros, o acesso é totalmente aberto.>
A venda de garrafas, em si, não é um crime, mas diversos especialistas alertam que é uma prática comum no mercado paralelo de falsificação de bebidas alcoólicas.>
Vendedores contatados pela reportagem dizem não saber qual é o destino das garrafas. Entre os anunciantes há também empresas de reciclagem e até pessoas que se apresentam como colecionadores.>
A BBC News Brasil procurou a Meta, responsável pelo Facebook, mas ainda não houve um posicionamento sobre o caso.>
Um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apontou que o mercado ilegal das bebidas alcoólicas movimentou R$ 56,9 bilhões no Brasil, aumento de 224% em relação a 2017. >
O modus operandi da falsificação passa pela reutilização de garrafas de marcas legítimas, segundo a entidade. De acordo com o Fórum, é comum na falsificação a prática do refil, com a reutilização dos vasilhames para envasamento das bebidas adulteradas. Só em 2023 foram apreendidas 1,3 milhão de garrafas de bebidas.>
Uma ação recente da Polícia Civil em Mogi das Cruzes, região metropolitana de São Paulo, encontrou um depósito em que estavam sendo higienizadas ao menos 20 mil garrafas.>
Para Lucien Belmonte, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Vidro (Abividro), a falta de fiscalização faz com que o crime compense nesse setor.>
Ele diz que o correto seria que estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas destinem as garrafas para contêineres de reciclagem ou contratem um serviço de coleta.>
"Já vi garrafas com tampa sendo vendidas a R$ 450. Obviamente isso não é para fazer abajur, mas para encaminhar para falsificação", diz. "Quem vende sabe que o objetivo é o descaminho, que é para esquema de falsificação.">
Ele destacou um projeto de lei, colocado no regime de urgência pela Câmara dos Deputados, que classifica como crime hediondo a adulteração de alimentos, incluindo bebidas, e avalia que esse comércio das garrafas com o objetivo de falsificação também deveria ser punido.>
"Hoje não há um crime específico. É preciso ter uma interpretação alargada da lei para tipificar.">
O controle de destilados importados, como gin ou vodka, é feito pela utilização de selos, que são impressos pela Casa da Moeda e aplicados nas tampas das garrafas. O selo autêntico tem uma holografia que mostra as letras R, F ou B.>
Segundo a Receita Federal, o selo está relacionado a aspectos tributários, sem preocupação específica com o conteúdo das garrafas ou composição do produto.>
Já a autorização de entrada no país de bebidas importadas cabe ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), que é responsável por verificar e autorizar previamente a importação desses produtos e avaliar identidade, qualidade e segurança.>
Entidades reclamam da suspensão de um sistema de rastreamento de bebidas, o Sicobe, que tinha sido implementado em 2008, mas foi desativado em 2016 sob alegação de altos custos de manutenção (cerca de R$ 1,4 bilhão ao ano). Houve uma determinação do Tribunal de Contas da União (TCU) no ano passado para religá-lo, mas o caso foi judicializado e está pendente de uma decisão no Supremo Tribunal Federal.>
Um estudo feito em 2023 e assinado por dois economistas da Fia Consultoria explica como funcionava o Sicobe: sensores instalados na linha de produção registravam a quantidade de bebidas engarrafadas em lata ou em garrafas. Os dados eram então encaminhados à Receita Federal, sem depender de notificações voluntárias das produtoras de bebidas.>
"O sistema reduz fraudes e evita subnotificação da produção", diz o estudo.>
Esse sistema, no entanto, fazia o monitoramento de cervejas e refrigerantes, não dos destilados, segundo nota divulgada pela Receita Federal. >
Ainda assim, especialistas avaliam que algum tipo de rastreamento precisa ocorrer para coibir a falsificação, mesmo que por meio de outro sistema.>
"Um comerciante mal-intencionado pode comprar a bebida original, vendê-la e depois, ao invés de mandar o vasilhame pra reciclagem, vender pra esse mercado paralelo, por um valor mais caro", diz Sérgio Pereira da Silva, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Combate à Falsificação.>
SIlva avalia que é necessário que haja algum tipo de rastreabilidade dos produtos e que só os selos não dão conta do problema.>
"Hoje você encontra facilmente selos falsificados pra comprar. A mesma gráfica que falsifica o rótulo também falsifica o selo.">
Para o delegado aposentado da Polícia Federal e consultor em compliance e segurança, Jorge Pontes, falta controle da produção de bebida no Brasil.>
"Antes o controle era muito melhor. Tem que ter algum tipo de controle estatal. Não dá pra deixar só na mão de particulares, pois cria-se um ambiente propício para a criminalidade", diz.>
"Hoje o chamado 'follow the product' [siga o produto] é tão importante quanto o 'follow the money' [siga o dinheiro] em investigações. O poder público precisa saber o que está sendo produzido, quanto está sendo produzido.">
O pesquisador-sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Nívio Nascimento, que participou de um estudo da entidade que cita o contrabando de bebidas alcoólicas, ressalta que esse tipo de crime sempre existiu, mas a novidade percebida nos últimos anos é a inserção e o interesse cada vez maior do crime organizado.>
"Muitas vezes associamos facções ao comércio de cocaína, maconha e outros ilícitos. Mas hoje o cenário é de diversificar a atuação. Houve uma infiltração robusta do crime organizado em diversos setores da economia, como o da bebida.">
Ainda não há evidências, vale lembrar, de que os casos de contaminação em São Paulo estejam ligados a facções.>
"Nesse momento há pouca informação disponível para concluir se há participação do PCC. É preciso esperar investigações para entender o que aconteceu", disse.>
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