Publicado em 25 de maio de 2025 às 17:39
Nas águas frias do Mar do Leste (Mar do Japão), na ilha sul-coreana de Jeju, mergulhadoras desafiam os limites do corpo humano.>
Munidas de uma faca e da força dos pulmões, as haenyeo ("mulheres do mar" em coreano) submergem até 15 metros de profundidade em busca de moluscos e outras criaturas marinhas.>
A maioria herdou das mães esse ofício, que vem sendo transmitido entre gerações — as primeiras referências documentadas datam do século 17.>
Além de ser um símbolo de identidade e resistência reconhecido pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial, as haenyeo nos últimos anos também têm dado contribuição importante para a ciência.>
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Pesquisadores investigam se o estilo de vida das mergulhadoras pode ter contribuído para a seleção genética de variantes que podem ajudar a tratar doenças crônicas como hipertensão e derrame.>
A tradição de mergulhar em Jeju para coletar moluscos — de abalones a polvos —, ouriços-do-mar, pepinos-do-mar e algas marinhas tem mais de quatro séculos de história documentada, remontando a escritos como A Topografia de Jeju, de 1629.>
O mergulho era visto originalmente como um atividade masculina, mas no século 17 as mulheres assumiram essa função por necessidade.>
Com os homens ausentes devido à guerra, migração ou pesca em alto mar, foram elas que passaram a se encarregar de prover para a família, mergulhando no oceano para coletar o sustento diário.>
Assim nasceram as haenyeo, que moldaram não apenas o modo de vida da ilha, mas também sua estrutura social: uma sociedade matriarcal única.>
Em algumas comunidades insulares, os homens eram responsáveis pelos cuidados com as crianças, enquanto as mulheres se encarregavam do trabalho remunerado.>
Tradições como o pagamento de um dote pelo noivo ou a celebração do nascimento de meninas em detrimento dos meninos refletem essa ordem social, na qual o ofício das haenyeo conferia respeito e autonomia.>
O trabalho é duro e perigoso: os turnos podem durar entre cinco e sete horas, mesmo no inverno, e os mergulhos atingem profundidades de até 15 ou 20 metros.>
A tecnologia lhes proporcionou melhores condições de trabalho — as roupas de algodão, por exemplo, foram substituídas por macacões de neoprene e foram incorporadas máscaras e nadadeiras —, mas elas ainda estão expostas a riscos extremos, desde doenças de descompressão e enroscamento em redes de pesca até encontros com tubarões.>
Alguns perderam parcial ou completamente a audição devido a mudanças de pressão.>
Por gerações, as haenyeo treinaram seus corpos para atuar sob condições extremas, mergulhando a profundidades de mais de 15 metros só com o ar dos pulmões, suportando temperaturas abaixo de zero no inverno e prendendo a respiração por minutos.>
A tradição centenária acabou tendo impacto no DNA dessas mulheres, conforme apontou uma pesquisa realizada por uma equipe internacional de cientistas.>
Diana Aguilar Gómez, especialista em genética populacional treinada na Universidade da Califórnia, Berkeley, liderou a análise genética de um estudo que começou em 2019 e revelou adaptações fisiológicas e genéticas únicas na comunidade das haenyeo.>
Seu trabalho, ela explicou à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC), consistiu em analisar sequências de DNA em busca de genes associados a características físicas específicas na população haenyeo.>
O projeto, conduzido em colaboração com pesquisadores da Universidade de Utah, da Universidade Nacional de Seul e da Universidade de Copenhague, comparou três grupos: haenyeo ativas de Jeju, mulheres que não mergulham na ilha e mulheres de outros lugares.>
Características fisiológicas como frequência cardíaca, pressão arterial e tamanho do baço foram analisadas, e experimentos conhecidos como "mergulhos simulados" foram conduzidos para replicar as condições da atividade das mergulhadoras sem colocar as demais participantes, muitas das quais idosas, em risco.>
"Colocamos as mulheres em frente a uma tigela de água fria, submergindo suas cabeças por um minuto, e então medimos como seus corpos reagiram", explica Aguilar.>
Esses experimentos nos permitiram observar como o reflexo de mergulho, que reduz a frequência cardíaca para conservar oxigênio, foi ativado com muito maior intensidade nas haenyeo.>
"Observamos que a frequência cardíaca delas diminuiu muito mais do que a de mulheres não treinadas. Isso é uma adaptação adquirida, um produto do treinamento", diz a cientista.>
A surpresa veio na análise do DNA: "Encontramos uma região reguladora de um gene que acreditamos que reduz a pressão arterial", observa Aguilar.>
Essa descoberta é especialmente relevante porque as haenyeo, mesmo as grávidas, não pararam de mergulhar.>
"O mergulho pode aumentar a pressão arterial, o que aumenta o risco de pré-eclâmpsia. Acreditamos que essa variante genética pode ter um efeito protetor nesses casos", revela.>
A equipe também identificou uma segunda mutação relacionada à resistência ao frio, que pode proteger contra a hipotermia.>
"Essas mulheres historicamente mergulhavam o ano inteiro com trajes de algodão, até mesmo no inverno. Essa variante genética pode ter sido selecionada porque as ajudou a sobreviver nessas condições", explica a pesquisadora.>
Segundo Aguilar, essa adaptação pode ter se consolidado há mais de mil anos.>
"Imagine duas mulheres grávidas em uma comunidade de mergulho. Uma tem a variante genética protetora e a outra não. Ao longo das gerações, é provável que aquelas com essa mutação sobrevivam mais, e isso se reflete no DNA coletivo da população", ela ilustra.>
Além do interesse antropológico, a pesquisadora afirma que as descobertas têm potencial médico global: "Essas variantes são encontradas em frequências diferentes em populações ao redor do mundo. Elas podem ser relevantes para pessoas com hipertensão ou problemas vasculares, não apenas para mergulhadores ou gestantes".>
O conhecimento desses genes poderá, no futuro, servir de base para o desenvolvimento de tratamentos.>
Aguilar acredita que "eles podem se tornar alvos terapêuticos. Ainda não sabemos como isso será aplicado, mas sabemos que algo útil pode sair disso".>
O trabalho da equipe foi publicado após anos de colaboração internacional e, para a cientista, registrar todo esse esforço em um periódico científico é apenas o primeiro passo: "A ciência funciona como um sistema de Lego. Nós juntamos as peças e outros constroem em cima. Mas o certo é que as haenyeo, além de serem um patrimônio cultural, agora também fornecem insights valiosos para a medicina do futuro", conclui.>
Durante décadas, a profissão foi vista como uma atividade de classes baixas, e muitas haenyeo cresceram sem acesso à educação formal, vendendo seus pescados em mercados desde muito jovens.>
Isso mudou nos últimos anos, com seu reconhecimento institucional e social, especialmente desde sua inclusão na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco.>
O governo sul-coreano tem oferecido ajuda financeira, direitos exclusivos de pesca e promovido a criação de museus e escolas com o intuito de preservar a tradição.>
O impacto dessas medidas, contudo, é limitado: poucas mulheres jovens estão dispostas a viver sob o risco constante e o isolamento de uma existência dedicada ao mar. >
Apenas algumas dezenas vêm se tornando mergulhadoras, e muitas que abraçam a atividade só a realizam esporadicamente ou em meio período.>
A população de haenyeo na Ilha de Jeju declinou vertiginosamente nas últimas décadas, de mais de 30 mil nos anos 1960 a menos de 3 mil. Hoje, mais de 80% delas têm mais de 60 anos.>
Isso se explica, em parte, pela transformação econômica pela qual Jeju passou nas últimas décadas.>
A ilha, que durante séculos dependeu da pesca e da agricultura, voltou-se para o turismo de massa e para o setor serviços, proporcionando oportunidades de trabalho mais confortáveis e melhor remuneradas do que o mergulho.>
Como resultado, cada vez menos meninas estão seguindo os passos de suas mães haenyeo, e o conhecimento tradicional que antes era passado de geração em geração corre o risco de ser perdido.>
Algumas iniciativas, no entanto, encontraram novas maneiras de manter vivo o espírito das mulheres do mar.>
Um exemplo é o restaurante Pyeongdae Sunggae Guksu, na costa nordeste de Jeju, fundado por duas mergulhadoras, que serve pratos tradicionais feitos exclusivamente com produtos pescados por elas mesmas, como os cobiçados ouriços-do-mar.>
O local se tornou um pequeno santuário culinário que celebra a cultura haenyeo e, ao mesmo tempo, as ajuda a complementar a renda.>
Outro raio de esperança está fora de Jeju, na ilha de Geoje, no sul do país.>
Sohee Jin, de 32 anos, deixou a movimentada cidade de Busan para se tornar mergulhadora e, após um ano de aprendizado não remunerado, ela literalmente entrou de cabeça na atividade.>
Hoje, ela não apenas pesca abalones e ouriços-do-mar. Documentando sua vida nas redes sociais, virou influenciadora, tem aparecido em programas de TV e chegou a atuar em um filme.>
Com a amiga Jungmin Woo, também mergulhadora, ela lidera um pequeno grupo de jovens mulheres haenyeo determinadas a preservar a tradição, adaptando-a ao século 21.>
Elas sabem que não escolheram um caminho fácil: além dos riscos da própria atividade, lidam com redes de pesca abandonadas, pescadores ilegais e os efeitos das mudanças climáticas nos ecossistemas marinhos.>
Mesmo assim, mergulham o ano todo, têm orgulho da profissão e encontram no mar uma liberdade que dizem que não trocariam pela rotina tediosa de um escritório.>
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