Publicado em 10 de dezembro de 2025 às 15:44
O avanço no Congresso do projeto de lei da dosimetria — que altera as penas de prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros condenados por tentativa de golpe de Estado — deixa o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de "mãos amarradas", na avaliação do analista político Creomar de Souza, sócio-fundador da consultoria Dharma e professor da Fundação Dom Cabral.>
Para ele, o governo foi um dos principais perdedores com a aprovação do projeto de lei na Câmara dos Deputados na madrugada desta quarta-feira (10/12) — já que a plataforma do presidente Lula tem sido se ôpor a qualquer tipo de flexibilização das penas dos envolvidos na invasão de Brasília de 8 de janeiro de 2023.>
Lula teria teoricamente o poder de vetar o PL da dosimetria — mas Souza acredita que qualquer veto acabaria derrotado pelo Centrão, provocando ainda mais desgaste ao governo.>
"O Centrão sempre vence", disse o analista em entrevista à BBC News Brasil nesta quinta-feira (10/12).>
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Na sua avaliação, o bolsonarismo também teve uma vitória parcial — apesar de ainda não ter conseguido seu objetivo principal, que é uma anistia total.>
O analista afirma que o governo se vê agora com as mãos amarradas — sem poder derrubar o projeto de lei da dosimetria, e precisando aceitar as decisões que vêm do Legislativo, hoje controlado pelo Centrão.>
O texto foi aprovado pelo Plenário com 291 votos. Votaram contra 148 parlamentares. O chamado PL da Dosimetria segue agora para o Senado, onde será relatado pelo senador Esperidião Amin (Progressistas-SC).>
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), disse que há um acordo para a PL da dosimetria ser votada na próxima semana dentro da comissão, e em seguida, no mesmo dia, ser apreciada pelo Plenário.>
A nova regra prevista no projeto de lei faz com que as penas por dois crimes — golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito — não sejam mais somadas. Passa a prevalecer apenas a pena maior, para tentativa de golpe de Estado, de 4 a 12 anos. Com isso, as penas totais de Bolsonaro e dos demais condenados no julgamento de setembro seriam reduzidas.>
Deputados alinhados ao governo tentaram retirar o projeto da pauta da Câmara na terça, mas sua solicitação para isso foi derrotada por 294 votos a 146.>
Confira abaixo trechos da entrevista com Cremoar de Souza.>
BBC News Brasil - O senhor tem alguma avaliação política de quem sai ganhando e perdendo com o avanço da PL da dosimetria?>
Creomar de Souza - Eu acho que quem sai perdendo é o governo do ponto de vista político, porque o governo teoricamente construiu um pedaço da sua plataforma em torno da ideia de que não deveria haver nenhum tipo de flexibilização com relação aos envolvidos no 8 de janeiro.>
Eu acho que perde também a própria posição do Supremo Tribunal Federal, que é parte negociadora da transformação pelo Paulinho da Força [do projeto] de anistia em dosimetria.>
Mas é preciso levar em consideração o contexto dessa aprovação. É uma semana em que o STF está na defensiva, tentando lidar com os estragos do Banco Master e os impactos disso sobre a figura do ministro Dias Toffoli. E isso tem um impacto político.>
Em termos de quem vence, eu creio que o grande vencedor é o Centrão. O Centrão sempre vence. Porque em algum sentido vem um desenho que atende aos interesses eleitorais do Centrão.>
E para o bolsonarismo, cuja pauta gira em torno de transformar a eleição de 2026 em um plebiscito sobre Jair Bolsonaro e seu legado, não me parece ruim o avanço da dosimetria, porque eles ganham alguma coisa. Antes não se tinha nada.>
BBC Brasil - Quais as opções para o presidente Lula agora? Ele pode vetar a PL da dosimetria, mas corre o risco de ver seu veto ser derrubado.>
Souza - Eu acho que o governo pode fazer muito pouco. Porque se o presidente vetar, o veto vai cair. Essa é uma legislatura que tem derrubado muitos vetos presidenciais, inclusive vetos em que o governo se engaja na ideia de que eles efetivamente sejam derrubados.>
O espaço de manobra é muito pequeno, tendo em vista a conjuntura eleitoral próxima.>
É óbvio que, do ponto de vista de agregação de militância, o governo pode optar por um veto, mas isso vai ser efetivamente pouco eficaz. A expectativa acaba se debruçando dentro de um padrão que a gente identificou aqui na Dharma, que seria dessa espécie de presidencialismo jurisdicional — uma coalizão informal entre a presidência e o STF.>
Mas tendo em vista o fato de que na atual conjuntura o governo está mal com a Câmara, está mal com o Senado e tem uma questão da necessidade de tentar aprovar um nome à feição do presidente, que seria do Jorge Messias para o STF, fica meio uma situação de mãos amarradas, em que vai se esperar efetivamente, como a Suprema Corte vai ler a decisão.>
BBC News Brasil - Vale a pena para o governo comprar essa briga da dosimetria? Um cálculo possível é que, para o governo, é melhor haver dosimetria do que anistia. Então se a dosimetria ajudar a enterrar os pedidos por anistia, poderia haver uma vantagem para o governo.>
Souza - Eu acho que se o governo for muito pragmático, ele pode fazer esse mesmo cálculo que você expôs — de que a dosimetria resolve a questão e vamos embora.>
O problema é que, ao mesmo passo que eu não considero que esse governo é hiper pragmático nesse nível, tem os embates da própria narrativa política pensando o ano eleitoral.>
E aí existe um elemento gerador de confusão nesse processo, que é a leitura que o bolsonarismo vai fazer caso o governo abra mão de qualquer tipo de embate. Porque eu acho que o bolsonarismo ainda seguirá gritando, dizendo "olha, avançamos a dosimetria que prova o nosso ponto, mas a gente quer anistia, porque a turma é inocente".>
E nessa dinâmica, se o governo der um sinal muito expresso de fraqueza ou de concessão, ele alimenta o discurso sem ganho eleitoral.>
Do outro lado, se ele criar um discurso que gera alguma resistência, ele pode fazer um movimento que o afaste ainda mais do Legislativo, mas ele pode trabalhar com horizonte futuro de uma possibilidade de vitória eleitoral ou de ganho eleitoral no curto prazo.>
Acho que esses dilemas vão estar na mesa. Seria irresponsável da minha parte tentar prognosticar o que o governo vai fazer.>
Mas o que a gente tem visto de padrão é que o governo normalmente está oscilando esse entre esses dois lados, porque é fruto também da própria dificuldade na tomada de decisão do governo.>
BBC News Brasil - Diz-se que parte do Centrão não quer a candidatura de Flávio Bolsonaro à Presidência, preferindo outros candidatos para a direita. Com a aprovação da dosimetria, o Centrão poderia negociar para que Flávio desista de sua candidatura?>
Souza - Eu acho que a liberdade de Jair Bolsonaro é algo que a família coloca na mesa em qualquer processo de negociação ou transferência de apoio. Era assim com o Bolsonaro na prisão domiciliar. É assim com a presença do Flávio.>
O que me levaria a ter um pouco mais de cautela é observar os desdobramentos da apreciação. O texto vai ainda ao Senado Federal. Ele vai ter uma relatoria que é do Esperidião Amin. O Esperidião Amin tem um interesse óbvio de ficar nas boas graças do bolsonarismo, porque ele é candidato à reeleição ao Senado.>
E deve ter uma disputa entre ele e a Carol De Toni [deputada federal pelo PL-SC] para ver quem fica com a segunda vaga [ao Senado], mantidas as condições de que o Carlos [Bolsonaro] saia candidato ao Senado por Santa Catarina.>
Então acho que isso é uma parte do cálculo.>
Do ponto de vista nacional, a perspectiva da família Bolsonaro de aprovação do texto pode fazer com que o Flávio, em algum sentido, dê um passo para trás — caso se faça algum tipo de arranjo para uma composição de uma chapa que fique mais à feição do Centrão, mas que não coloque o bolsonarismo em uma condição hiperperiférica.>
E aí, eu acho que para o bolsonarismo, quanto mais tarde vier essa solução, melhor será para se reter capital político.>
Lembrando a decisão do PT e do Lula pelo [lançamento da candidatura de] Haddad em 2018. Se segurou o máximo possível [a candidatura de Haddad] para que o nome do Lula continuasse sendo falado.>
Não importa o fato de Bolsonaro não ser candidato. O importante é fazer com que a eleição seja o máximo possível sobre o Bolsonaro.>
BBC News Brasil - Como fica a relação do Congresso com o STF? Por um lado, a PL da dosimetria parece ser uma afronta às penas decididas pela Primeira Turma no julgamento de Bolsonaro e demais réus. Mas por outro lado, houve uma reunião com presença do Paulinho da Força, do ex-presidente Michel Temer e do ministro Alexandre de Moraes em que se costurou a ideia de mudar a dosimetria das penas. >
Afinal: esse PL é uma afronta do Congresso ao STF ou um acordo?>
Souza - Vamos brincar com as palavras: talvez seja um acordo afrontoso (risos) em um momento do jogo político de atrito do Legislativo contra os outros poderes, e em que o Legislativo já derrotou o Executivo.>
Eu acho que as emendas orçamentárias são uma prova de que o Legislativo derrotou o Executivo. O Legislativo tem quase tanto dinheiro de emenda parlamentar quanto o governo federal tem de PAC.>
A segunda parte do embate é com o Judiciário. E esse embate com o Judiciário, eu acho que tem mais camadas.>
Uma camada é o julgamento da constitucionalidade das emendas de orçamentárias pelo Flávio Dino. Uma outra camada é o inquérito das Fake News com Alexandre de Moraes. E uma terceira camada é a eventual permanência em cárcere daqueles envolvidos no 8 de janeiro.>
Para cada uma dessas camadas, me parece que há um processo de negociação que tem um componente de paralelismo — o papel do Gilmar, a presença do próprio Alexandre, do ex-presidente Michel Temer, negociando o PL da Dosimetria e à feição dos interesses do STF com o Paulinho da Força. >
E em outros temas, o jogo fica meio que em aberto.>
A impressão que nós temos olhando de cá, e essa é uma hipótese que a gente trabalha, é que, em alguns sentidos, algumas forças políticas que eram muito pujantes em 2013 e 2014 — como o próprio Michel Temer, Aécio Neves, Marconi Pirillo — estivessem usando esse momento de negociação da dosimetria para se recolocar.>
A primeira foto do Paulinho foi com o Aécio e o Temer, logo que ele foi indicado para a relatoria pelo Hugo Motta. É como se o Centrão estivesse, para além da posição de grande operador das emendas e das decisões legislativas, tentando recolocar e reposicionar os seus nomes como atores inescapáveis do debate político.>
O que, em algum sentido, acaba dizendo: "o lugar do antipetismo é de alguns desses caras aqui, não é desse pessoal que chegou agora, não é dos novos ricos".>
É da turma que tradicionalmente já fazia isso há muito tempo.>
Então eu creio que existem esses elementos que dariam essa feição de um acordo afrontoso, de um acordo no limite.>
BBC News Brasil - O governo já acumula muitas derrotas para o Centrão no Congresso. Quando existe um grande embate, o Centrão acaba ganhando. Isso já virou uma regra do jogo político?>
Souza - Eu acho que essa é uma regra. É uma regra que se apresenta não só para o governo Lula, mas se apresenta também no governo Bolsonaro e nos governos da Dilma e do Temer.>
Da Lava Jato para cá, mas sobretudo a partir do impeachment da Dilma para cá, todos os governos tiveram que, em determinado sentido, entregar a chave do cofre para o Legislativo.>
E quando a gente está falando do Legislativo, estamos falando basicamente o Centrão.>
O Legislativo foi capaz de ir construindo instrumentos de anteparo para sua própria proteção. Em uma escala em que o Executivo sempre começa o jogo já perdendo.>
A administração Bolsonaro já tinha entendido que não valia um embate.>
É sempre bom lembrar da fala do Bolsonaro "mas eu era do Centrão, sempre fui do Centrão".>
E quando vem o Lula, ele tem uma ideia muito consolidada de um presidencialismo de coalizão clássico, em que o governo tem um controle do orçamento e usa isso para efetivamente dizer quem recebe o que a partir das votações no Congresso.>
E eu acho que o Lula tentou reconstruir esse presidencialismo de coalizão clássico.>
O que o Lula não contava ou o que o governo não conseguiu entender é que a partir desses baixos números que o governo tem de apoio robusto, principalmente na Câmara, essa tarefa se torna quase impossível.>
BBC News Brasil - Como fica o eleitor no meio de toda essa discussão no PL da dosimetria? O que estava em discussão originalmente eram as penas de prisão, mas o que acaba entrando também no debate é a pré-candidatura do Flávio Bolsonaro ou a disputa por vagas no Senado em Santa Catarina.>
Souza - O grau de degradação institucional que a gente está vendo, que afeta a reputação de todos os poderes, se manifesta na cabeça do eleitor. Eles pensam: "os caras não se importam".>
A imagem do Congresso é muito ruim, tanto que se nós olharmos para hashtags que são desqualificadoras ao Congresso — "Congresso, O inimigo do povo" — elas funcionam muito bem. Elas têm muito alcance, porque há um processo de descolamento entre o eleitor e a instituição, que no fim é muito perigoso.>
O congressista sabe, sobretudo na Câmara dos deputados, devido ao enorme número de atores políticos envolvidos, que é possível diluir esse estrago. No fim, a figura que aparece é a do Hugo Motta.>
Me parece que o impacto direto desse tipo de processo sobre o eleitor é mais um degrauzinho subido na escala de divórcio entre a cidadania e a representação — que é algo muito perigoso e que deu muita robustez da ideia de uma agenda anti-política e antissistema nas eleições de 2018, que continuou presente nas eleições de 2022, com essa bancada que é muito grande, de apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.>
E que acaba sendo fomentada e estimulada por ações também dos outros poderes. Questões que envolvem o STF, questões que envolvem o executivo, acabam fomentando também um tipo de discurso de descrença.>
Acaba que, como o Congresso está muito direcionado e povoado pelas bolhas, isso atende a uma turma de uma outra de uma bolha. Os outros ficam meio indiferentes e a vida segue.>
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