Publicado em 14 de setembro de 2023 às 05:21
Vivemos em um mundo rápido, acelerado, mediado pelas novas tecnologias, onde a premissa é ver e ser visto.>
E isso, claro, influencia irremediavelmente a forma como nos relacionamos com os outros e o tipo de sociedade que construímos.>
Essa é a visão de Claudiene Haroche, socióloga e antropóloga francesa que iniciou sua carreira no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS) até se tornar diretora emérita da entidade.>
Para ela, se antes havia um sentimento de pertencimento por conta de nossos laços estreitos e calorosos, agora enfrentamos vínculos sociais que se caracterizam pelo anonimato frio e pelo isolamento, processo que se intensifica cada vez mais nas sociedades individualistas.>
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Haroche trabalha com uma abordagem transdisciplinar para compreender como os modos, os comportamentos, os sentimentos e a personalidade podem ter mudado nas sociedades contemporâneas.>
Claudine Haroche é autora de livros como História do Rosto: Exprimir e Calar as Emoções (1988) e Tiranias da Visibilidade: o Visível e o Invisível nas Sociedades Contemporâneas (2011).>
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ela durante o Hay Festival Querétaro, que aconteceu entre os dias 7 e 10 de setembro no México. Confira a entrevista abaixo. >
BBC - Você diz em seus livros que, ao longo da história, o ser humano mudou o valor de cada sentido. Se na Idade Média o tato e a audição eram muito mais valorizados, agora é a visão. Isso significa que perdemos o contato com as pessoas?>
Claudine Haroche - De fato. Temos muito menos contato com as pessoas mas, ao mesmo tempo, estamos sempre, por exemplo, com o celular, que é tátil. E isso nos dá uma falsa sensação de realidade e tato.>
É um momento complexo porque perdemos o contato direto com as pessoas, a comunicação próxima, o toque. E, ao mesmo tempo que aumenta a distância entre as pessoas, cada vez mais nos expomos e nos mostramos à sociedade, ainda que de forma superficial.>
Isso nos afeta muito psicologicamente, porque não se perde apenas o contato, mas também a profundidade das relações com os outros e com nós mesmos.>
E isso acontece porque a sociedade atual nos pede para estarmos ocupados o tempo todo. Como estamos sempre fazendo algo, nem paramos para pensar, não processamos o que nos acontece, entramos no automático. É quase um decreto moral: você tem que dizer que está ocupado o tempo inteiro.>
Isso significa não pensar no que sentimos, não olhar para dentro, o que afeta a nossa saúde e também a sociedade.>
A sociedade em que vivemos exige que tenhamos muitos laços, por exemplo por motivos profissionais, mas não são laços verdadeiros, tão importantes para a construção de um bom tecido social.>
BBC - Quem se beneficia desta ruptura do tecido social, deste isolamento?>
Haroche - Os Estados, os governos, o próprio sistema atual.>
Os espaços para criar comunidades estão sendo perdidos. Agora você pode assistir a um filme em casa, mas não é a mesma coisa que assistir em grupo, com alguém, e depois conversar sobre o que viu, na presença do outro.>
As conversas, como já disse, tornam-se extremamente superficiais. Não pensar beneficia o sistema.>
Reclamo muito do sistema neoliberal, que individualiza muito. E isso torna os indivíduos muito dependentes. É um paradoxo, porque por um lado o sistema "nos liberta", mas, ao nos tornarmos tão independentes, ficamos mais isolados e vulneráveis, portanto, mais dependentes.>
Neste sistema, a competição tem precedência sobre a emulação. Há uma visão muito competitiva das pessoas à qual me oponho. É muito melhor, quando você está em grupo, imitar e brincar de ser você mesmo. Você aumenta sua criatividade, aprimora sua mente, não tenta estar acima do outro. Deveríamos tentar restaurar isso em nossa sociedade.>
BBC - Nos seus artigos e livros você se refere em diversas ocasiões ao conceito de sociedade líquida do escritor Zygmunt Bauman, uma sociedade em constante mudança, em permanente transição e incerteza. Quais são os perigos, na sua opinião, desta sociedade líquida?>
Haroche - O perigo está dentro do ser humano, no seu espaço interno, em sua consciência. Você tem contatos, pessoas com quem você conversa o tempo inteiro, em todos os lugares, nas redes sociais, mas contatos sem profundidade e sem tempo para entrar em si mesmo, para pensar.>
E isso leva ao conformismo.>
Mas, ao mesmo tempo, o perigo nesta sociedade onde não há limites entre o nosso mundo interno e externo, onde que não podemos nos expressar livremente. Nos últimos tempos há cada vez mais pessoas fazendo julgamentos, grupos que te julgam em massa pelo que você escreve, comenta. Assim, surge o assédio online.>
Passou do assédio sexual ao assédio moral. Há alguns anos se dizia que o assédio moral não existia, que isso é ridículo, mas ele existe e é muito importante e perigoso.>
Por exemplo, num lugar com tantas regulamentações, como as universidades dos Estados Unidos, as aulas agora são de "portas abertas" e qualquer um pode reclamar da atitude de qualquer um. Foi feita uma tentativa de regular alguns problemas, mas outros foram criados.>
Isso também fala da atual cultura do cancelamento, algo sobre o qual devemos ser muito cautelosos. É preciso evitar o radical. É, talvez, uma forma de apagar a história.>
BBC - Tudo isso que você está falando está intimamente relacionado ao uso que fazemos das redes sociais hoje em dia.>
Haroche - Isso acontece nas redes sociais porque estamos o tempo todo conectados e pelo tipo de contato que ali se estabelece.>
Por exemplo, imagine que uma pessoa busca ter milhares de seguidores em uma rede social. Esta é uma forma de mercantilizar a cultura, tal como Adorno e Horkheimer falaram no século passado com a Escola de Frankfurt.>
É uma forma de comercializar tudo, a cultura, a ciência. Mas também está deixando uma lacuna perigosa para que possamos "ser produtivos" o tempo todo.>
Às vezes somos produtivos, às vezes não. Nesse espaço devemos permitir que as pessoas desenvolvam livremente as suas mentes e a sua própria capacidade de pensar e, assim, evitar toda a enorme violência que é gerada nas redes.>
Há quem tente resistir, que não caia nessa, mas é complicado com a atual sociedade hiperconectada e acelerada.>
BBC - Você fala de sociedades que vivem no "calor", tendo laços reais e estreitos, e outras na "frieza", onde predominam a superficialidade e o anonimato. A nossa sociedade é de frieza?>
Haroche - Sim, totalmente. Por conta dessa super individualização e da constante falta de contato real entre as pessoas.>
Por exemplo, existem diferentes tipos de proteção na sociedade, como a que um membro da família pode oferecer. Mas agora, cada vez mais, há famílias monoparentais e isto contribui para a migração constante, para o fato de termos de nos deslocar de um lugar para outro e isso pode criar uma falta de proteção, de desenraizamento.>
Por um lado, temos mais liberdade, mas também menos proteção quando estamos sozinhos.>
É difícil ter liberdade, conexões profundas e proteção ao mesmo tempo.>
Este sistema atual funciona para aqueles que são suficientemente fortes para viverem sozinhos, mas é muito difícil. Estamos nos tornando cada vez mais uma sociedade superficial.>
BBC - Com esse panorama, qual o papel dos sentidos, da sensibilidade e da percepção hoje em dia?>
Haroche - Isto tem tudo a ver com a aceleração e limitação que existe na sociedade atual.>
Há uma parte muito positiva: por um lado, muitas pessoas estão ficando muito mais conscientes do seu corpo. Mas, ao mesmo tempo, surge na sociedade uma série de regras e regimes que impõem limitações, como métodos para impedir as mulheres de adquirir conhecimento, de estudar. >
Portanto, há um duplo desenvolvimento na forma como nos percebemos.>
Há abertura por um lado, em que as mulheres conquistam cada vez mais espaços, mas também há outros onde aparece uma educação mais radical e limitadora. A complexidade entre religião e política é sempre uma tragédia.>
BBC - Você se refere também à dominação histórica que as mulheres sofreram, mas também como os homens sofrem as exigências ou os termos do exercício dessa dominação.>
Haroche - Acredito realmente que hoje devemos exigir do feminismo não só a proteção das mulheres, mas também dos homens. Existe uma relação entre os dois.>
Há sempre uma mistura de homem e mulher dentro de um homem e uma luta nisso.>
Você vê um exemplo de como os homens sofrem as exigências dessa dominação na reação dos ditadores, por exemplo alguém como Vladimir Putin, com total falta de humor e obsessão pela dominação, dominação masculina, masculinidade exacerbada. Acontece com Putin, mas também se vê em Jair Bolsonaro.>
As pessoas se tornam dependentes dessa dominação, num duplo sentido. E não sabem como sair dela. Os homens devem ser fortes e, além disso, mostrar-se fortes.>
Todos os seres humanos têm medo, mas somos fracos de nascença. E é normal que queiramos proteção, mas o grande problema agora são os homens que querem se livrar das mulheres e as mulheres querem se livrar dos homens. É uma radicalização tremenda. >
E a questão é que é necessário ver como olhamos para as nossas identidades, e não como confiná-las em termos como "masculino" e "feminino".>
BBC - Pelo que você diz, não estamos buscando proteção neste momento através da nossa vulnerabilidade, mas sim expondo uma aparente força e frieza.>
Haroche - Fingimos que somos fortes, mas não somos.>
Note-se que um dos elementos do nazismo foi justamente o fortíssimo desenvolvimento da masculinidade física, a dominação e o ódio à homossexualidade. Havia muito medo da homossexualidade, entendida por eles como uma fraqueza.>
Vemos isso agora também em muitos lugares, esse medo da homossexualidade, até mesmo por meio da proibição. É um reforço disso, de frieza e domínio versus calor e vulnerabilidade.>
Vemos isso em países como o Afeganistão, com o domínio sobre as mulheres.>
É muito complicado mudar esse tipo de sistema de fora, tem que ser feito de dentro. E é difícil. É um grande problema. Há muita discussão no meio sobre o respeito à cultura, a gestão dela.>
BBC - Voltando ao início, aos sentidos, a dar prioridade ao toque pessoal e ao contato real com os outros: voltarmos ao nosso corpo, à sensibilidade e ao calor, mas, ao mesmo tempo, sem deixar de estar em contato com outras pessoas. É isso?>
Haroche - Por um lado, no mundo de hoje temos que tornar visível o nosso próprio eu, a nossa vida visível dentro deste mundo tão conectado.>
E isso implica mais tempo nas telas, e menos tempo para a interioridade. >
Isso é algo muito problemático, porque não há tempo para intimidade, para nos conectarmos verdadeiramente com a nossa diversidade. >
Dou como exemplo algo que acontece nos Estados Unidos, onde em muitos lugares, para diminuir o racismo, as pessoas criam um currículo neutro, sem foto. >
Isto por um lado é bom, mas por outro temos que aprender a diversidade. >
Temos que aprender que todo ser humano tem medo, medo do que é diferente. Justamente temos de aprender que somos todos diferentes, mas que conseguimos fazer conexões, que existem diferenças que não conseguimos compreender plenamente, mas que é preciso entendê-las.>
E uma das coisas que pode nos ajudar nisso é, sem dúvida, a conversa. Conversas profundas, conversas reais e profundas.>
Outra coisa importante para essa resistência é o humor. É uma forma de resistir a esta aceleração, a esta distância.>
Você vê isso agora com as crianças, que passam muitas horas nas redes, conectadas, sem contato real com os outros e sem tempo para pensar e refletir. E isso pode fazer com que tenhamos adultos conformistas no futuro.>
Assim como é importante que os adultos retornem a essa interioridade, parando, pensando e se conectando com os outros por meio de uma conversa boa e profunda, para as crianças é essencial uma boa educação que as torne capazes de olhar para dentro, sentir e cultivar esse mundo interior.>
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