Publicado em 14 de outubro de 2025 às 07:32
Na sala dos professores do Ginásio Caetano de Campos, conhecido como Caetaninho, uma escola pública que funcionava na Rua Augusta, uma questão angustiava: era preciso buscar uma solução para aliviar o calendário letivo no segundo semestre, então carente de pausas para o descanso.>
Foi quando o piracicabano Salomão Becker (1922-2006) teve uma ideia. Ele se lembrou que em sua cidade-natal havia a tradição de um dia em que os alunos levavam doces e salgadinhos para se confraternizar com os professores. Juntou alhos com bugalhos e propôs uma pausa nas atividades escolares para que fosse celebrado o Dia do Professor — que hoje é celebrado no Brasil todo dia 15 de outubro.>
A escolha da data não poderia ser mais conveniente: mais ou menos no meio do segundo semestre escolar, coincidindo com o dia da primeira legislação brasileira a instituir oficialmente a educação pública primária em todo o território nacional, a Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, sancionada pelo imperador d. Pedro 1º (1798-1834).>
Em 1947, portanto, o Caetaninho passou a ter o Dia dos Professores. E a ideia logo foi se espalhando por outros colégios. Tanto que, no ano seguinte, se tornou lei paulista.>
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"A iniciativa de Salomão Becker é a gênese afetiva e comunitária da data", comenta à BBC News Brasil o publicitário Rinaldo Allara Filho, pesquisador da área de educação e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Ele percebeu o esgotamento físico e mental dos colegas ao final de um longo período letivo e teve uma ideia simples, porém profundamente humana: organizar um dia de folga e confraternização.">
"O objetivo dele não era criar um feriado nacional, mas sim um momento de pausa e reflexão", explica Allara. "Era uma oportunidade para os professores se reunirem, trocarem experiências sobre os desafios da profissão, analisarem os problemas em comum e, principalmente, descansarem e se sentirem valorizados por seus pares. A iniciativa nasceu 'de baixo para cima', a partir da vivência real da sala de aula. Era sobre congraçamento, sobre criar uma comunidade de apoio mútuo em um ofício que pode ser muito solitário.">
Questão constante na história brasileira, a busca pela valorização do trabalho do professor era uma preocupação naqueles anos 1940. Tanto que, naquela mesma época, a professora catarinense Antonieta de Barros (1901-1952), então deputada estadual, criou uma lei instituindo o Dia do Professor como feriado escolar em Santa Catarina.>
Barros entraria para a história como a primeira mulher negra a ser eleita para um cargo público no Brasil, tornando-se um ícone de pioneirismo tanto para o movimento negro quanto para a causa feminista.>
"O professor Becker não estava só em sua iniciativa. Outros personagens se destacaram com essa ideia [de valorizar o magistério]. Por coincidência ou não, a professora Antonieta de Barros trabalhou nesse mesmo sentido, de valorizar a figura do professor mediante o estabelecimento da efeméride", afirma à BBC News Brasil o educador Italo Francisco Curcio, consultor da Fundação Eduardo Carlos Pereira. "E ela o fez, por meio de uma lei estadual.">
Allara pontua que embora não haja evidências de conexão direta ou colaboração entre Becker e Barros, é preciso ressaltar o "espírito do tempo" do Brasil daquela época.>
"O país vivia um período de redemocratização após o Estado Novo, e havia um debate nacional intenso sobre os rumos da nação e o papel da educação nesse processo de reconstrução. A necessidade de valorizar o magistério era uma pauta latente na sociedade", diz o professor.>
"Particularmente penso que, as duas iniciativas, embora independentes, podem ser vistas como duas manifestações distintas, porém complementares, dessa mesma necessidade, uma nascida da prática e da solidariedade de classe em São Paulo, e outra, da visão política e do compromisso social em Santa Catarina.">
Allara observa que há uma complementaridade entre as duas iniciativas.>
"Mostra que a luta pela valorização não é uma abstração, mas foi liderada por pessoas reais, com motivações concretas. Becker nos lembra da importância do cuidado mútuo e da saúde mental docente. Antonieta nos inspira com sua resiliência e visão política", afirma.>
Fato é que a proposta pegou em todo o país. Em outubro de 1963, o então presidente João Goulart (1919-1976) publicou um decreto instituindo o feriado escolar do Dia do Professor no território nacional.>
Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo, Becker foi professor de história e geografia em diversas escolas públicas e privadas ao longo de 49 anos. Ele era filho de imigrantes que trocaram a Moldávia pelo Brasil no início dos anos 1910 e deficiente físico — tinha paralisia total no braço direito, desde o nascimento.>
Na juventude, Becker teve uma breve passagem pelo jornalismo, como repórter do jornal Folha da Tarde. Encontrou-se mesmo no magistério. Tanto que, já aposentado, decidiu cursar Direito e, tão logo se diplomou, acabou se tornando professor de direito internacional na Universidade Presbiteriana Mackenzie.>
Curcio reconhece que há poucas informações biográficas que detalhem a trajetória de Becker mas que, "bastou essa iniciativa", a da criação da data comemorativa, "para mencionar-se sua notoriedade".>
"Entendo que ele estava imbuído do mesmo princípio que o meu: o da necessidade de se destacar uma data para homenagear um personagem marcante em nossa vida, o professor, a professora", comenta o educador.>
"Com seus quase 50 anos de docência, os registros históricos disponíveis acerca de sua biografia são parcos e não nos possibilitam destacar eventuais outras grandes marcas, que possam ter sido vivenciadas. Mas, mesmo assim, sabe-se de seu brilhantismo e dedicação singular na sua vida de professor", avalia Curcio.>
Para o educador, Becker almejava "muito mais do que a efeméride". "Ele queria festejar e promover um dia de destaque do professor", salienta.>
Antonieta de Barros é uma figura que vem sendo resgatada do apagamento nos últimos anos — em 2023 teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Filha de uma lavadeira, ex-escravizada, com um homem sobre o qual há poucas informações, teve uma infância pobre e difícil em Florianópolis.>
Para ajudar nas despesas domésticas, sua mãe transformou a casa da família em uma pensão para estudantes. Conta-se que foi essa convivência que fez da menina uma apaixonada pelas letras. Tudo indica que foi por causa desses clientes de sua mãe que Barros se alfabetizou, inclusive.>
Tornou-se professora e, ao longo da vida, dividiu-se entre empregos em escolas e o curso particular que ela criou para alfabetizar crianças pobres e sem acesso escolar.>
Também foi jornalista. Fundou o dirigiu o jornal A Semana e escreveu para a imprensa local, não raras vezes tecendo críticas sociais.>
Na política, iniciou como ativista de classe — foi uma das fundadoras da Liga do Magistério Catarinense. Mais tarde, se tornaria deputada estadual, uma das primeiras mulheres eleitas do país e a primeira mulher negra a ocupar um cargo eletivo. Também foi constituinte em 1935.>
"A história de Antonieta de Barros ressignifica a data", ressalta Allara. "Ela nos lembra que a valorização do professor está intrinsecamente ligada à luta por uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa.">
"Ela, uma mulher negra educando a partir das margens, viu na institucionalização do Dia do Professor um ato de afirmação da educação como pilar da democracia. Portanto, revisitar sua história não é apenas resgatar o passado; é nos inspirar para lutar por um futuro onde a valorização do professor seja, de fato, a prioridade que a sociedade brasileira merece.">
Estudioso da história do magistério no Brasil há 30 anos, o linguista Vicente de Paula da Silva Martins, professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), no Ceará, lembra à BBC News Brasil que é preciso destacar a importância da data escolhida no Brasil para comemorar o Dia do Professor.>
"É o marco fundador do sistema nacional de ensino e da valorização jurídica da profissão docente", destaca ele, referindo-se ao decreto imperial de 1827. "Escolher essa data não é apenas um gesto comemorativo: é o reconhecimento da origem legal, institucional e simbólica da docência no Brasil.">
Ao analisar a legislação original, Martins explica que ali estão os fundamentos que definem quem são os professores, quais seus papéis e como deveria se estabelecer a autoridade pedagógica no país recém-independente.>
"Tudo isso inserido em um projeto de sociedade cujas marcas ainda influenciam a forma como valorizamos, ou nem sempre valorizamos, o magistério", pontua.>
A lei daquela época, por exemplo, delimitava diferenças entre professor e mestre. O primeiro era responsável direto pela instrução dos alunos. Já o mestre ocupava posição mais elevada na hierarquia escolar, exercendo papéis de supervisão, orientação, coordenação e liderança.>
Martins observa que tal "arranjo institucional" previa a "construção de uma hierarquia sociopedagógica", com papéis definidos de instrução e de controle e organização do ensino. Para ele, portanto, houve não apenas a organização do ensino das primeiras letras, mas a consolidação de "uma estrutura educacional marcada por desigualdades de função, prestígio e gênero".>
"Todos os mestres eram professores, mas nem todo professor era mestre. E as mestras, embora formalmente reconhecidas, atuavam sob limites impostos pela sociedade patriarcal da época", resume. "Essa distinção, cristalizada legalmente, ecoa ainda hoje em debates sobre valorização docente, liderança pedagógica e igualdade de gênero na educação brasileira.">
Para o professor da UVA, a lei de 1827 tem de ser entendida como "documento fundamental para compreender a formação da educação pública no Brasil". "Ela representa, ao mesmo tempo, um avanço normativo e um reflexo das contradições do liberalismo brasileiro no século 19", avalia Martins. "É uma lei de inspiração moderna, que valoriza o mérito, a instrução e a profissionalização do magistério. Mas que permanece presa às amarras da centralização imperial.">
Por outro lado, ele reconhece que, ao determinar a criação de escolas de primeiras letras em todo o território, o imperador empreendeu, para os padrões da época, "uma tentativa ousada de universalizar o ensino básico".>
"A educação, que até então era privilégio das elites e muitas vezes restrita a instituições religiosas, passou a ser entendida como um serviço público, sob responsabilidade direta do Estado", contextualiza ele. "Essa mudança de paradigma foi essencial para a construção de uma identidade nacional que valorizasse o saber e a formação cidadã.">
A lei imperial foi a primeira a reconhecer o professor como "agente fundamental" na "formação moral, intelectual e cívica dos cidadão".>
E estabelecia até mesmo a remuneração que deveria ser dada aos professores. De acordo com estudo de Martins, os valores previstos naquela legislação, se atualizados para a realidade atual, indicariam que um professor deveria receber ordenados mensais de no mínimo R$ 5.733 — e um teto de R$ 14.336.>
O currículo básico deveria ensinar leitura, escrita, aritmética, gramática, moral cristã, religião católica, geometria e constituição e história do Brasil.>
Para os especialistas, a data ainda hoje é importante para provocar uma valorização do magistério. "Apesar de ter menos pompa do que em outras épocas", diz Curcio.>
Allara vê "uma dualidade" no feriado escolar.>
"Por um lado, há uma dimensão afetiva e genuína, manifestada por alunos e famílias, que reconhece o impacto do professor em suas trajetórias. Esse reconhecimento é valioso e necessário para o bem-estar emocional do docente", comenta ele.>
"Contudo, por outro lado, essa celebração pontual contrasta com um desafio estrutural. A data promove um reconhecimento sentimental, mas ainda falha em impulsionar a valorização profissional da categoria. A sociedade precisa avançar na percepção do magistério, superando a imagem histórica de uma profissão puramente vocacionada, que por vezes beira a filantropia em termos de condições de trabalho, para consolidá-la como um pilar estratégico na construção de futuros cidadãos.">
Ou seja: a data celebra o professor, mas ainda faltam políticas que valorizem efetivamente o magistério.>
"As celebrações não dependem apenas do sentimento de alguém que as organiza ou que as sugere, mas, sobretudo de quem as assimila, inclusive seu organizador ou seu proponente. Por isso, o tom da celebração é relativo", pondera o educador Curcio.>
"Eu ainda creio que o professor é uma figura respeitada e celebrada.">
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