Publicado em 19 de outubro de 2025 às 15:33
Buenos Aires, setembro de 2023. Centenas de pessoas se aglomeravam para balançar bandeiras e filmar com seus celulares. >
No centro da multidão, um homem de cabelos desgranhados e costeletas, vestido com uma jaqueta de couro preta, erguia uma motossera barulhenta acima da cabeça. >
Era um comício eleitoral que acontecia na região de San Martín, na capital da Argentina, um mês antes da eleição presidencial — e a metáfora era explícita. >
O candidato Javier Milei acreditava que o estado estava muito inchado, com dívidas anuais maiores do que toda a produção econômica do país. >
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Em vez de "cortar a gordura", como alguns políticos delicadamente dizem, ele disse que usaria uma motosserra para cortar ministérios, subsídios e a classe política dominante, a qual ele ridicularizou chamando de la casta (a casta, em português).>
Milei já era conhecido por suas encenações. >
Em 2019, ele vestiu uma fantasia de "super-herói libertário", supostamente vindo de Liberland, uma terra onde não se pagam impostos. >
Em 2018, quebrou uma piñata que representava o Banco Central ao vivo em um programa de televisão. >
De acordo com dados oficiais, a inflação em 2023 na Argentina ultrapassou 211% ao ano — Milei assumiu o governo em dezembro daquele ano. Cerca de 40% da população vivia na pobreza.>
Anos de altos gastos públicos e a dependência de imprimir mais dinheiro e contrair empréstimos para cobrir déficits deixaram o país em um ciclo de dívidas e inflação. >
No entanto, quase dois anos depois, os números principais são muito diferentes: a Argentina registrou seu primeiro superávit fiscal em 14 anos, e a inflação, que atingia três dígitos anualmente, caiu para cerca de 36%. >
A líder do partido Conservador do Reino Unido, Kemi Badenoch, chamou as medidas tomadas por Milei como um "modelo" para um futuro governo conservador.>
Nos Estados Unidos, Donald Trump já descreveu Milei como "meu presidente favorito" e recentemente fez novos elogios a ele durante encontro em Washington, na última terça-feira (14/10).>
Ele [Milei] "é puro Maga", declarou Trump, referindo-se ao slogan Make America Great Again, usado por ele durante a campanha eleitoral americana. >
O presidente argentino, por sua vez, disse que estava "honrado" em visitar a Casa Branca e elogiou os esforços de Trump em busca da paz no Oriente Médio.>
O encontro entre os dois chefes de Estado celebrou um plano de resgate financeiro oferecido pelos EUA à Argentina para acalmar a crise cambial no país.>
A decisão de Washington de trocar US$ 20 bilhões (R$ 109 bilhões) de dólares por pesos — efetivamente sustentando a moeda argentina com apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI) — é um sinal de que a terapia de choque fiscal de Milei tem agradado aos credores internacionais. >
Mas Trump deixou claro que a ajuda tem cunho eleitoral e visa impulsionar a popularidade de Milei nas pesquisas antes das eleições de meio de mandato, em 26 de outubro.>
"Acho que eles vão melhorar depois disso", afirmou Trump, que também manifestou apoio à candidatura do presidente argentino à reeleição em 2027, sugerindo que a continuidade do apoio financeiro dos EUA depende da vitória de Milei.>
"Se ele perder, não seremos tão generosos com a Argentina. Nossos acordos estão sujeitos a quem vencer a eleição", disse Trump.>
Apesar de todo o elogio internacional, esse é apenas um lado da história. >
Nas ruas da Argentina têm ocorrido protestos contra as reformas de Milei, com a polícia lançando gás lacrimogêneo, balas de borracha e jatos d'água durante os confrontos. >
"Ele disse em sua campanha que esse ajuste seria pago pela "casta" — os ricos, os políticos e os empresários malvados", afirma Mercerdes D'Alessandro, economista de esquerda e candidata ao Senado. >
Mas, segundo ela, o resultado foi menos dinheiro para os aposentados e hospitais. >
"No fim, o ajuste acabou sendo direcionado às classes trabalhadoras, não à casta.">
Os críticos de Milei argumentam que o custo de suas reformas tem sido recessão, perda de empregos, enfraquecimento dos serviços públicos e queda no orçamento das famílias. >
E agora, alguns economistas afirmam que o país pode estar prestes a entrar em uma recessão. >
Milei criou um paradoxo. >
No papel, sua "motosserra" alcançou parte dos sucessos macroeconômicos que ele prometeu. Mas ele perdeu apoio político, o que assustou os mercados e, por consequência, desestabilizou seu projeto econômico. >
Com as eleições de meio de mandato se aproximando, em 26 de outubro, a Argentina está prestes a dar seu veredito: Milei será punido por ter feito o que se propôs a fazer? E a perda de apoio político pode destruir completamente seus ganhos econômicos?>
Cerca de 1.120 quilômetros da capital, na província de Misiones, o agricultor de chá Ygor Sobol parece apreensivo. "Estamos todos regredindo economicamente", diz. >
"Tive que fechar a folha de pagamento. Agora estou completamente sem funcionários.">
Há três gerações, sua família cultiva erva-mate, uma bebida popular entre os argentinos, mas desde que Milei desregulamentou o setor, eliminando os preços mínimos, Sobol afirma que suas colheitas passaram a valer menos do que o custo de produção. >
Agora, ele diz não ter condições de arcar com tarefas básicas, como limpar e adubar a plantação. >
E com o negócio dando prejuízo, ele está decidindo sobre o que sua família terá que abrir mão. >
A indústria têxtil multibilionária da Argentina também está sendo afetada. >
Luciano Galfione, presidente da organização sem fins lucrativos Fundacion Pro Tejer, relata fechamentos e demissões "diárias". >
Ao contrário da abordagem de Trump de aumentar tarifas para promover o lema "America First", Milei cortou tarifas e outros critérios para importações. >
"Tenho controles ambientais, controles trabalhistas, nós não pagamos US$ 80 por mês, nem temos jornadas de 16 horas, como é permitido em locais como Bangladesh e Vietnã. Isso cria um campo de competição desigual", argumenta Galfione. >
Ele acredita que o aumento das importações prejudicou os produtores nacionais: >
"Nosso setor perdeu mais de 10 mil empregos diretos. Se somarmos os indiretos, o número é muito maior.">
Galfione também culpa o aumento dos custos de serviços públicos, saúde e escolas pela redução da renda disponível da população média, tornando as pessoas menos propensas a comprarem roupas. >
E, apesar de tudo isso, Milei está convencido de que suas medidas melhorarão a vida dos argentinos comuns. >
Na reta final da eleição, Milei dizia que não havia alternativa aos grandes cortes. >
Além da inflação crescente, os vastos subsídios do governo mantinham os preços da energia e do transporte baixos. >
Os gastos públicos eram altos, mesmo antes da pandemia de Covid-19. O controle de preços fixou valores para certos produtos. E a Argentina, ainda assim, deve cerca de R$ 226 bilhões para o FMI. >
"A demanda por gasto público era brutal", argumenta Ramiro Castiñeira, economista da consultoria Econométrica, que apoia Milei. >
"A sociedade parecia disposta a conviver com tanta inflação, ou não percebia que a inflação era resultado de tanto gasto público.">
A inflação consumia o poder de compra do peso. >
Muitos argentinos comuns entregavam quantias desproporcionais de pesos a cambistas ilegais para comprar dólares, com medo que seu dinheiro perdesse valor da noite para o dia. >
"Tudo era uma grande bagunça", explica Martin Rapetti, professor de economia na Universidade de Buenos Aires e diretor-executivo do think thank Equilibria. >
"As pessoas sentiam o dinheiro escorrer pelos dedos como se fosse água.">
Para muitos economistas, uma mudança drástica era essencial para restaurar a credibilidade. E Milei prometeu uma mudança radical. >
Ele viralizou ao arrancar nomes de ministérios do governo, como o da Cultura e o da Mulher, de um quadro branco enquanto gritava: "Fora!".>
Entre outras medidas de austeridade, Mileu reduziu pela metade os ministérios do governo, cortou dezenas de milhares de empregos públicos, cortou orçamentos, incluindo os de educação, saúde, previdência e infraestrutura, e removeu subsídios, elevando o preço de energia e transporte. >
Sua desvalorização inicial do peso em 50% fez a inflação disparar, mas depois ela caiu, à medida que as pessoas passaram a gastar menos e a demanda diminuiu. >
Quando o conheci em abril de 2024, havia esculturas dele empunhando uma motossera em exposição e porta-copos com o rosto de Margaret Thacther em seu escritório.>
Thatcher é odiada por muitos na Argentina devido à Guerra das Malvinas, mas Milei me disse que a admirava e que ela era "brilhante".>
No mês passado, um jornal britânico descreveu a abordagem de Milei na Argentina como tendo "ecos do Thatcherismo". >
O economista Miguel Boggiano, membro do conselho econômico consultivo de Milei, elogia o presidente por ter conseguido reduzir a inflação e o déficit. >
"Levando em conta o ponto de partida, isso é uma conquista enorme", afirma. >
Ele acredita que isso ajudará a reduzir a pobreza a longo prazo e permitirá diminuir os impostos, além de facilitar o planejamento das pessoas com seus gastos, já que a inflação está oscilando menos atualmente. >
Mas Alan Cibils, economista independente e ex-professor, adverte que a queda da inflação só é um sucesso se for sustentada ao longo do tempo, o que ele acredita que não acontecerá.>
Javier Milei não é um político de carreira. Antes de se tornar presidente, ele teve dois anos de experiência como deputado no Congresso argentino.>
"Estar tão afastado, de certa forma, o protege", observa o professor Rapetti, citando a falta de "sinais de empatia na vida pública".>
No dia 7 de setembro, o partido de Milei sofreu uma derrota inesperada nas eleições provinciais em Buenos Aires. >
Os mercados entraram em pânico: investidores estrangeiros venderam pesos e títulos da dívida pública argentina. >
Os mercados financeiros vinham, em geral, apoiando o programa econômico de Milei. Mas as eleições de meio mandato estão se aproximando, assim como o pagamento de dívidas previsto para para o próximo ano. >
O socorro financeiro oferecido por Trump trouxe alguma estabilidade: após o anúncio, os títulos argentinos e o peso aumentaram o valor. >
Mas, segundo D'Alessandro, embora a intervenção dos EUA possa resolver um problema mais amplo, nada muda na "vida real das pessoas". >
"Vamos continuar sem investimento em hospitais, educação, programas sociais. Esse dinheiro dos EUA não vai melhorar a infraestrutura da Argentina.">
Alguns dos apoiadores de Milei — como Boggiano — acreditam que há algo a mais por trás das críticas generalizadas ao presidente. >
Para ele, grande parte das críticas vem da oposição, que tenta "desfazer" o que Milei tem feito, com objetivo de retornar ao poder. >
"Quando todos começarem a acreditar que a estabilidade veio para ficar, os investidores voltarão", afirma Boggiano. >
"Acho que Milei se tornará um modelo para outros países.">
Outros não têm tanta certeza assim. >
"Há uma certa estabilidade que ajuda as coisas a não explodirem", afirma Cibils. >
"Mas eu acho que a estabilidade é também uma miragem.">
Milei também manteve a inflação sob controle gastando as reservas do país para sustentar o peso e evitar seu colapso. Com isso, a Argentina deve US$ 20 bilhões em dívidas para o próximo ano. >
Um ex-economista do Banco Central, que preferiu falar de forma anônima, alerta que a estratégia de Milei de manter a inflação baixa pode desmoronar se a Argentina não conseguir pagar suas dívidas. >
"Se no fim das contas tivermos uma crise financeira que desfaça parcialmente todo o esforço, então será um fracasso. Se isso terminar em agitação social, qualquer progresso será revertido", afirmou o economista.>
O governador de esquerda de Buenos Aires, Axel Kicillof, tem sido apontado como um futuro candidato presidencial para as eleições de 2027.>
Ele se posiciona a favor do estado de bem-estar social. Alguns investidores calculam que isso poderia significar um retorno para os tempos de grandes gastos. >
Quanto à questão se Milei tem sido bem-sucedido no cargo, a resposta depende em grande parte da definição de "sucesso" e para quem ele é. >
Muitos trabalhadores veem fábricas fechadas, contas disparando e uma rede de proteção social que desaparece. >
Enquanto isso, investidores enxergam uma história de sucesso em disciplina fiscal, inflação controlada, alinhamento com Washington e, simplesmente, uma "normalização". >
Mas mesmo que líderes estrangeiros observem o experimento de Milei com fascínio, a política pode explicar por que poucos provavelmente o imitarão. >
Se as pessoas comuns perderem a fé no que ele está fazendo, o mercado também perderá confiança de que seu programa é sustentável — e isso poderia apagar até mesmo seus sucessos "macro".>
"Ele não tem expertise política, e eu acho que é necessário", argumenta Rapetti. >
Ainda assim, ele acredita que é muito cedo para julgar: "Nós estamos na metade do mandato... a história ainda não acabou.">
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