Publicado em 24 de dezembro de 2025 às 07:44
O título acima pode soar estranho uma vez que, para a sociedade contemporânea ocidental, parece claro que a origem do Natal é o nascimento daquele personagem, cerca de 2 mil anos atrás, chamado Jesus — e toda a construção religiosa que seria erguida a partir dele, muito embora a festa tenha sido apropriada como uma tradição até mesmo desvinculada de crenças.>
Mas há diversos indícios de que as pessoas já comemoravam o Natal cerca de 7 mil anos antes de Cristo, o que faz dessa celebração quase tão antiga quanto o próprio conceito de civilização.>
A explicação está nos marcos da natureza: afinal, se a ideia de civilização remonta às origens da agricultura, nada mais natural do que celebrar o solstício de inverno como um momento de renascimento, de renovação.>
Claro, estamos pensando sob a ótica do hemisfério norte. O solstício de inverno, que ocorre nessa parte do globo nas proximidades do Natal, indica aquele momento em que a noite chega ao seu máximo — a partir daquele dia, o sol cada dia terá mais tempo para iluminar nosso planeta.>
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Em um tempo de precária ciência e de exagerada observação dos fenômenos naturais, o sinal era claro: a luz solar renascia nesse momento, aumentando em tempo e intensidade a cada dia desde então. E era o que propiciaria a agricultura da nova safra, a alimentação do ano vindouro.>
No livro Religions of Rome, os historiadores Mary Beard e John North lembram que o período dedicado a celebrar o solstício era todo devotado a um deus — Mitra —, durava uma semana e era permeado por celebrações entre as famílias, com trocas de presentes e comilanças típicas. Nada diferente do Natal contemporâneo, portanto.>
Oriundo da mitologia persa, Mitra era o deus da sabedoria, representando a luz, o bem sobre o mal.>
Aos poucos, no mundo romano, foi dividindo espaço com outra divindade, Saturno: afinal, se era o começo de um "novo" sol, nada mais natural do que render graças àquele que era o deus da agricultura.>
Mas Mitra também era a divindade que se confundia com o próprio Sol: com sua carruagem, viajava ele todos os dias pelo céu com o objetivo de iluminar e espantar as forças das trevas.>
O 25 de dezembro se torna oficial, portanto, no século 3 da nossa era — mas ainda sem nenhuma alusão a Jesus.>
A culpa recai sobre o imperador romano Lúcio Domício Aureliano (214-275). Ele, que havia ascendido hierarquicamente depois de engrossar as fileiras do exército romano, decidiu institucionalizar a festa que já era muito celebrada pelos militares de Roma.>
"Tinha um forte apelo junto aos soldados a filiação, do ponto de vista religioso, à divindade do Sol Invictus", comenta o o historiador André Leonardo Chevitarese, autor de, entre outros, A Descoberta do Jesus Histórico, e professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).>
Em sociedades basicamente dependentes dos ciclos da natureza e em um período carente de conhecimento científico para justificar as mudanças do tempo, fazia muito sentido que divindades e celebrações tivessem, em seu cerne, o objetivo de justificar os bons e os maus resultados das safras.>
"Houve muitas festas de nascimento de grandes personagens e personagens míticos e algumas datas coincidentes com equinócios e solstícios. E mudanças de estações no ano agrícola sempre eram alegremente celebradas", diz o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).>
"Semear e colher era o ritmo da vida e de celebrar natal, aliás, palavra em corruptela para nascimento", acrescenta ele.>
Em paralelo a esse contexto, crescia em tamanho e importância aquela nova religião, no início uma seita judaica perseguida, depois uma nova doutrina. O cristianismo. Seu mito fundador era uma figura nascida em Belém, província romana na Judeia, no Oriente Médio. A data exata? Ninguém sabia naquela época, ninguém sabe ainda hoje.>
"Não se tinha clareza, certeza, nenhuma documentação categórica no sentido de dizer a data em que Jesus nasceu", afirma Chevitarese.>
"Não sabemos com precisão nem o ano em que ele nasceu, muito menos o dia. As informações que nos chegaram, dos evangelhos, foram de muito tempo depois [da vida do próprio Jesus], escritas por volta do ano 70 [de nossa era], cerca de 40 anos depois do 'evento Jesus Cristo'. E temos algumas informações ali que não batem historicamente com aquilo que sabemos historicamente", explica o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.>
Chevitarese lembra que, ao analisar as narrativas antigas, é possível reconhecer que quando as comunidades cristãs "tomaram a decisão de correr atrás desses dados", eles já haviam sido perdidos.>
"Não se tinha mais como recuperar minimamente qualquer história no sentido do factual nascimento de Jesus", acrescenta.>
"Não sabemos a data exata do nascimento de Jesus, o filho de Maria e José, o nazareno", resume o teólogo Fernando Altemeyer Junior.>
Se Aureliano efetivou a comemoração ao Sol Invictus, é preciso lembrar de dois outros imperadores romanos que contribuiriam para a criação do Natal tal e qual conhecemos hoje. Flávio Valério Constantino (272-337) e Flávio Teodosio (346-395).>
Enquanto o primeiro permitiu o exercício do cristianismo, o segundo tornou a religião cristã a oficial de Roma, conforme pontua Moraes.>
"O que acontece nesse pêndulo histórico é que o cristianismo sai da condição de religião marginal, de seita perseguida, e se torna religião oficial do império", enfatiza o professor da Mackenzie.>
Então nada mais natural do que, entendendo Jesus como a "luz da vida", sobrepôr a festa de seu nascimento àquela comemoração pelo Sol Invictus, que nada mais era do que o renascimento do sol — já que o solstício indica que, a partir daquele dia, o sol diário fica cada vez "maior".>
"Na narrativa, a ideia de associar Jesus a uma luz, à luz de uma estrela que ilumina os caminhos, tem sentido. Assim, a partir da segunda metade do século 3 há um profundo diálogo entre experiências religiosas e esse é um movimento interessantíssimo para o cristianismo", comenta Chevitarese.>
Desta forma, o 25 de dezembro como Natal não foi algo "inventado", mas sim algo "convencionado", como bem esclarece o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.>
"Os antigos romanos celebram, na data, o solstício de inverno no hemisfério norte, a festa do Sol Invicto. Os cristãos, desde os primeiros séculos, associaram Jesus à luz que vem para iluminar a humanidade e tirá-las das trevas", afirma.>
"Assim, a identificação com o Deus Sol era bastante natural à mentalidade da época. Já havia, nas pregações de São Paulo, por exemplo, a noção de que o 'Deus verdadeiro' cristão já era intuído e estava presente nos panteões da Antiguidade", prossegue.>
"As primeiras igrejas cristãs também usavam muitas vezes materiais recolhidos de templos pagãos, para mostrar que as antigas crenças não haviam simplesmente sido abandonadas, mas sim integradas e superadas por uma mais verdadeira", diz ele.>
"Uma festa da natureza foi reapropriada pelos cristãos dando um novo significado a ela pelo nascimento do Filho de Deus", acrescenta Altemeyer Junior.>
A verdadeira data de nascimento do Jesus histórico é um mistério que jamais será revelado, acreditam pesquisadores.>
Não há registros da época e os relatos mais precisos que foram preservados, os evangelhos, não se atentaram — ou não conseguiram atentar — para detalhes deste tipo.>
"O que Mateus e Lucas [os dois dos quatro evangelistas que narram o nascimento de Jesus] fizeram foi muito mais um olhar teológico, contando o nascimento de Jesus à luz de paralelos com outros nascimentos divinos", contextualiza Chevitarese.>
"Assim, Jesus ganharia características de filho de Deus, de um homem divino, de alguém diferente, poderoso, milagreiro, exorcista. Seu nascimento já denunciava que ele era alguém diferenciado", acrescenta ele.>
"Não falamos de data, porque data mesmo nunca se chegou a um consenso", acrescenta o pesquisador.>
"Historiadores suspeitam que Jesus possa ter nascido no fim do governo de Herodes, o Grande, portanto entre o ano 6 e 4 antes da Era Comum. Imagina que loucura: Jesus nasceu 'antes de Cristo'. Só com o passar do tempo se assumiu a data do 25 de dezembro", conclui.>
Quando o cristianismo se oficializou como religião romana, uma série de concílios passaram a ocorrer para organizar as regras da doutrina. Foi quando apareceu pela primeira vez essa questão do Natal.>
"No século 4 ocorreram grandes concílios da igreja definindo dogmas e datas importantes. Foi aí que tivemos a fixação do que a gente chama de Natal. Substituir [uma celebração que já havia] era uma prática comum", diz o historiador Moraes.>
Essa oficialização coube ao papa Júlio Primeiro (?-352). No ano de 350 ele publicou um decreto substituindo a veneração ao Deus Sol pela data do nascimento de Jesus. Foi a maneira que ele encontrou para suprimir as festas pagãs de inverno.>
"O cristianismo soube dialogar e se aproveitar das interações culturais com outros campos religiosos. É isso que o fez sobreviver: essa capacidade de se transformar para continuar sendo o que ele era", analisa Chevitarese.>
"E é isso que faz com que ele sobreviva ainda hoje, todos os dias, se transformando para continuar sendo o que ele é.">
"Jesus como Sol Invictus seria absolutamente representativo se colado a Jesus viesse também a data do dia 25 de dezembro", compara o historiador.>
"Foi uma data ressignificada, a ressignificação cultural de uma festa. O cristianismo construiu sob uma base já existente", concorda Moraes.>
"A data já era celebrada por outros povos, da antiguidade oriental aos gregos e romanos. E como o cristianismo nasceu no Império Romano, essa data acabou sendo apropriada pelos cristãos. Não da noite para o dia.">
Para o sociólogo Ribeiro Neto é preciso atentar para o fato de que "existe uma estratégia comunicativa bem conhecida e praticada na sociedade moderna, mas que sempre existiu". "É mais fácil ressignificar práticas e costumes já arraigados na vida do povo do que criar novos costumes e novas práticas", ressalta ele.>
"Por exemplo, quase todas as celebrações que marcam momentos de passagem na vida das pessoas, como formaturas e posses, e festas cívicas, com seus desfiles e pompas, emulam gestos semelhantes realizados pelas religiões", diz o sociólogo.>
"Mas, além disso, o cristianismo baseia-se na premissa de que o coração do ser humano sempre anseia por Deus, mesmo que não o conheça ou mesmo o renegue. Sendo assim, para a lógica cristã era natural que a vinda de Cristo já fosse intuída e até comemorada antes mesmo de seu nascimento. O renascer do sol na manhã ou a volta dos dias mais longos do ano após o solstício de inverno seriam sinais a animar a esperança dos seres humanos de que um Deus viria a iluminar suas vidas, assim como o sol sempre volta depois da noite", acrescenta ele.>
Nesse sentido, é possível analisar que o Natal passou por novas ressignificações até chegar ao modelo atual — comercial e não necessariamente religioso.>
"Hoje, é uma data consolidada e apropriada pela tradição capitalista. Ou seja: o cristianismo ressignificou o Natal, mas o Natal continua sendo ressignificado", analisa Moraes. "Continua apropriado pelas mais diversas culturas, por momentos históricos e vai ganhando outros significados ao longo do tempo.">
"O cristianismo incorporou uma efeméride de crenças anteriores e nesse sentido a gente comemora o Natal até hoje", prossegue. "Mas o Natal continua sendo transformado, ressignificado. Seja pelo modo de produção capitalista, seja pela forma de celebração.">
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2021 e republicado após atualização.>
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