Publicado em 29 de junho de 2025 às 09:39
"Sim, eu escrevi às autoridades para que se encarregassem dela.">
Com estas palavras, o soldado russo aposentado Valentin Botsvin reconheceu ter denunciado uma compatriota por "atos desleais" contra o exército do seu país.>
Longe de ter qualquer tipo de arrependimento, o ex-militar defendeu suas ações em entrevista à BBC.>
"Escrevi muitas cartas [denúncias] e nem todas vieram a público. Fiz porque, agora, estamos em uma batalha pelos valores humanos [...]. Por isso, estamos travando esta guerra [na Ucrânia]", declarou ele.>
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A acusação do ex-militar se dirigiu à artista Alisa Gorshenina.>
Ela participou de um vídeo do controverso grupo musical russo Pussy Riot, questionando a invasão russa ao país vizinho e o tratamento do Kremlin aos que criticam o conflito.>
Em abril, Gorshenina foi detida e permaneceu 10 dias em um calabouço, de onde saiu depois de pagar uma multa.>
O caso da artista não é isolado. Ele revela que as delações – uma prática muito comum na era soviética – estão ressurgindo na Rússia de Vladimir Putin.>
"O partido tem um grande exército de informantes voluntários. Temos uma imagem completa: de todos, todos", declarou Konstantin Chernenko (1911-1985), que governou a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) entre 1984 e 1985.>
As denúncias dos cidadãos foram um traço característico do extinto Estado comunista desde os seus primórdios. A prática foi herdada do regime czarista anterior, segundo o historiador russo Vladimir Kozlov, no seu artigo intitulado O Fenômeno da Denúncia.>
"A denúncia, ao lado das queixas às 'autoridades superiores' sobre funcionários e burocratas, agressores e opressores do povo, substituía frequentemente os tribunais e constituía a última esperança para o restabelecimento da justiça", explica o historiador.>
Mas foi em 1922, com a chegada ao poder de Josef Stalin (1878-1953), que as delações foram institucionalizadas. Elas se expandiram para além do combate aos "abusos por parte das autoridades e funcionários locais", para criar um poderoso mecanismo de controle social.>
O próprio Código Penal soviético de 1926 ameaçava de prisão os cidadãos soviéticos que "não denunciassem um delito contrarrevolucionário conhecido, preparado ou cometido".>
Durante o chamado "Grande Terror" (os expurgos ordenados por Stalin na década de 1930), segundo alguns historiadores, morreram até um milhão de pessoas.>
Na época, casos como o do pioneiro Pavlik Morozov (1918-1932) eram exaltados pelas autoridades e utilizados para convencer os cidadãos de que deveriam vigiar-se mutuamente e denunciar qualquer anomalia, não importasse quem a cometesse.>
Morozov era um menino de 13 anos de idade, filho de um alto funcionário municipal na região dos montes Urais.>
Segundo a versão soviética, ele recorreu à polícia em 1932, para acusar seu pai de "vender documentos para inimigos do povo". O pai foi preso, mas a família, indignada, matou o denunciante.>
Depois do colapso da União Soviética, surgiram evidências de que o aparato de propaganda do país fabricou o caso.>
Mas casos como o de Morozov serviram para que amigos, vizinhos e até familiares se acusassem perante as autoridades. Muitas vezes, as acusações não traziam nenhum tipo de evidência e eram apresentadas com objetivos ocultos, aproveitando o anonimato.>
Em 1937, o então jovem burocrata Ivan Benediktov (1902-1983) foi acusado de "sabotagem" perante a temida NKVD (predecessora da KGB, o serviço secreto soviético).>
Mas, milagrosamente, Stalin não o enviou para um dos temidos gulags, ou campos de trabalho forçado. Ele o nomeou Comissário do Povo (Ministro) da Agricultura.>
No seu novo cargo, o funcionário público teve acesso ao processo contra si próprio e ficou surpreso com o que encontrou.>
"Fui acusado por pessoas que eu considerava meus amigos mais próximos, em quem eu confiava total e completamente", recordou Benediktov décadas depois, segundo o artigo A Denúncia como Fenômeno Sociopsicológico: A Experiência Doméstica da Década de 1930, do filósofo russo Nekhamkin V. Arkadyevich.>
Estudiosos encontraram, nos arquivos da extinta KGB, evidências de que uma mesma pessoa enviou mais de 300 denúncias para todo tipo de autoridades. A maioria dessas denúncias não se sustentava.>
Desde o início da invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022, as delações ressurgiram na Rússia, novamente fomentadas pelo Kremlin.>
"O povo russo sempre conseguirá distinguir os verdadeiros patriotas da escória e dos traidores", declarou o presidente russo, Vladimir Putin, um mês depois do início da sua chamada "operação militar especial".>
"Estou certo de que uma autodesintoxicação natural da sociedade fortalecerá nosso país", destacou ele.>
Imediatamente em seguida, Putin instou seus compatriotas a expelir os dissidentes "como um mosquito que entrou acidentalmente na sua boca".>
E, para silenciar qualquer crítica, o governo russo reformulou seu Código Penal, determinando pena de até 15 anos de prisão às pessoas que difundirem "informações falsas" e "desacreditarem" o exército russo.>
Desde então, cerca de 1.695 pessoas foram encarceradas por motivos políticos em toda a Rússia. E outras 3.316 enfrentam acusações penais por se manifestarem ou expressarem críticas contra o conflito bélico, segundo a organização não governamental especializada em direitos humanos OVD-Info, qualificada por Moscou como "agente estrangeiro".>
Desde o início da invasão da Ucrânia até novembro do ano passado, a organização havia contabilizado 21 julgamentos com origem em denúncias apresentadas por cidadãos russos. Outras 175 pessoas enfrentavam processos administrativos e mais 79 foram multadas por acusações de deslealdade ou atos similares.>
Um caso que transcendeu as fronteiras da Rússia foi o da médica Nadezhda Buyanova, de 68 anos. Um tribunal a condenou em novembro passado a cinco anos e meio de prisão, por "espalhar deliberadamente informações falsas" sobre o exército russo.>
A mãe de um dos pacientes denunciou a pediatra por ter dito que a morte do pai do seu filho na Ucrânia era justificada por "ser objetivo militar".>
Buyanova negou as afirmações. Mas a acusação da sua delatora, agregada ao fato de que a artista nasceu na Ucrânia quando o país ainda fazia parte da URSS, foram evidências suficientes para o julgamento, segundo a agência de notícias Reuters.>
"Eu havia lido que isso aconteceu com outras pessoas, mas nunca pensei que ocorreria comigo", lamentou-se Buyanova, no início do seu julgamento.>
Mas, se milhões de pessoas foram vítimas das delações no passado, por que elas estão reaparecendo com tanta força?>
"É uma prática soviética, mas também tem algo a ver com o código genético russo: o medo e a tentativa de se proteger dos demais a todo custo", explicou há alguns meses à BBC a professora russo-americana de assuntos internacionais Nina Khrushcheva, da The New School de Nova York, nos Estados Unidos.>
"O que acho fascinante é a rapidez com que regressou a memória genética russa e pessoas que não viveram em um determinado período histórico [o stalinismo] agem repentinamente como se fossem daquela época", concluiu ela.>
As pesquisas dão razão à professora.>
Um estudo da Fundação de Opinião Pública, uma organização alinhada ao Kremlin, concluiu que 24% dos entrevistados estavam dispostos a informar às autoridades sobre alguém que expressasse opiniões negativas sobre as operações militares da Rússia na Ucrânia.>
Por outro lado, 14% afirmaram que denunciariam pessoas que criticassem o presidente Vladimir Putin.>
Voltando ao caso da artista, Gorshenina reconheceu que passou muito tempo sentindo medo.>
"Eu não sabia se receberia uma visita [das autoridades] e era inquietante ver os carros passarem, ou os homens com roupas escuras na calçada", contou ela à BBC. "Eu receava que estivessem me seguindo.">
A artista revelou que o primeiro advogado consultado por ela recomendou que ela deixasse a Rússia o quanto antes. Mas Gorshenina se recusou.>
"Tantos direitos nos foram arrancados que achei importante ficar", explicou ela. Mas, atualmente, nenhum museu ou galeria quer exibir o seu trabalho.>
Já o denunciante, o ex-soldado Botsvin, declarou que o processo teria sido evitado se Gorshenina tivesse se desculpado.>
Segundo a OVD-Info, outros 41 artistas estão presos atualmente na Rússia e 176 se encontram sob vigilância ou submetidos a pressões – mesmo considerando que o artigo 29 da Constituição russa garante a liberdade de pensamento e expressão a todos os cidadãos do país.>
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