Publicado em 16 de julho de 2025 às 16:25
No segundo semestre de 2022, uma situação inusitada em Roraima chamou a atenção do cientista Felipe Naveca.>
Centenas de pessoas passaram a apresentar febre, dor no corpo, vermelhidão na pele e nos olhos — sintomas que sugerem um quadro de dengue, zika ou chikungunya.>
No entanto, uma grande proporção dos exames laboratoriais feitos nesses pacientes trazia um resultado negativo para essas três doenças, transmitidas pela picada do mosquito Aedes aegypti.>
"Ou seja, eram muitos casos suspeitos e poucos confirmados", resume Naveca, que é pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).>
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Uma análise mais detalhada revelou que o problema era outro.>
"Não era dengue. Era oropouche", informa o especialista.>
Esse vírus endêmico da Amazônia também é transmitido por mosquitos — e a infecção provoca incômodos similares aos observados na ação daqueles outros três patógenos mais conhecidos.>
Desde o episódio ocorrido em Roraima, algo parecido se repetiu em outras partes da Região Norte, como Acre, Amazonas e Rondônia.>
Além disso, o vírus conseguiu ultrapassar as barreiras da Amazônia e hoje causa surtos em locais como Bahia, Espírito Santo e Santa Catarina, além de já ter sido importado para outros países das Américas e da Europa.>
O oropouche é apenas um exemplo de como a Amazônia, o local mais biodiverso do mundo, é lar de milhares de vírus, bactérias e outros agentes microscópicos que podem eventualmente causar problemas de saúde em seres humanos.>
Mais que isso, pesquisas recentes têm demonstrado que a degradação desse bioma por meio do desmatamento, do garimpo e de outras atividades aumenta o risco de contato com esses patógenos — e eventualmente pode se tornar o gatilho para futuras epidemias ou até pandemias.>
A BBC News Brasil conversou com especialistas para entender o risco de a Amazônia virar o berço de futuros problemas de saúde pública global e o que precisa ser feito para evitar que um cenário desses se torne realidade num futuro próximo.>
Em linhas gerais, vírus, fungos, bactérias, protozoários e outros agentes microscópicos vivem ciclos bem definidos na natureza, com animais hospedeiros, intermediários e outros elementos que determinam o equilíbrio dessa dinâmica.>
"Esses patógenos circulam de uma maneira saudável dentro do ecossistema onde atuam, sem causar problemas para os seres humanos", contextualiza o biólogo Joel Henrique Ellwanger, do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).>
"A ameaça só passa a existir quando acontece a interferência humana nesses sistemas", complementa ele.>
Nos últimos cinco anos, Ellwanger publicou alguns artigos científicos em que detalha como um processo desses poderia acontecer na Amazônia.>
A ideia dele é entender como esse spillover — conceito científico que descreve uma espécie de "pulo" ou "salto", um processo de transição no qual os patógenos passam a afetar os seres humanos — pode acontecer na prática, dentro do contexto específico deste bioma brasileiro.>
"Nem todo evento de spillover vai gerar uma epidemia. Isso vai depender do patógeno, de ele conseguir chegar até a população humana e encontrar ali as condições favoráveis para se disseminar", pondera o biólogo.>
E essas tais condições favoráveis envolvem aspectos biológicos e genéticos — como nossas células terem um receptor onde o vírus consegue se encaixar, por exemplo — até questões sociais, como a existência de um mosquito na região que pode servir de hospedeiro e perpetuador dos ciclos de transmissão.>
"Quando ocorre o desmatamento em alguma região, toda a fauna que habita aquele lugar vai se mover. Muitas vezes, o animal que servia de reservatório natural para aquele patógeno foge. E os vetores, que transmitem doenças como malária e leishmaniose, vão se alimentar de sangue disponível, como o de seres humanos", detalha Naveca.>
No entanto, quando pensamos na abundância amazônica, tudo isso ganha uma escala muito maior, o que faz as probabilidades também crescerem numa progressão geométrica.>
"Imagina a diversidade de plantas que existe ali e a gente sequer conhece. Se pensarmos que cada espécie de ser vivo possui um microbioma próprio, estamos muito longe de entender todas as potenciais ameaças", explica Ellwanger.>
"Nós conhecemos apenas uma gota de um imenso oceano microbiano que interage nesse ecossistema", complementa ele.>
O historiador das ciências Rômulo de Paula Andrade, da Casa de Oswaldo Cruz, também ligada à FioCruz, chama a atenção para o trabalho feito por um laboratório de virologia que foi instalado em Belém do Pará entre 1954 e 1971, com patrocínio da Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos.>
"Nesse período, a partir da coleta de amostras, eles isolaram mais de 2 mil cepas de vírus que são transmitidos por insetos ou aracnídeos", conta ele.>
Ou seja, se apenas um ou alguns deles forem capazes de cumprir alguns requisitos básicos para um spillover — como foi o caso do oropouche recentemente —, estamos diante de uma possível nova dor de cabeça em termos de saúde pública.>
"Vários estudos recentes mostram que a gente não conhece quase nada em termos da diversidade de patógenos da Amazônia", admite Naveca.>
E isso se torna ainda mais preocupante num cenário de degradação deste bioma, como registrado ao longo das últimas décadas.>
"São tantos os vetores, patógenos, mecanismos e facilitadores de eventos de spillover que a degradação da Amazônia se torna a tempestade perfeita para a disseminação de doenças infecciosas", resume Ellwanger.>
Em suas pesquisas, Ellwanger registrou uma série de práticas que acontecem na maior floresta tropical do mundo.>
Segundo o cientista, elas estão por trás do desequilíbrio na dinâmica da natureza e do aumento do contato das pessoas com uma série de patógenos potencialmente perigosos.>
"Um dos grandes vetores do desmatamento na Amazônia hoje é a mineração", cita ele.>
"Para realizar essa atividade, seres humanos entram na floresta, desmatam e exploram o solo em busca de ouro e outros minerais valiosos. Esse processo já coloca os seres humanos em contato com diversos vetores de doenças infecciosas, como mosquitos e carrapatos.">
"Mas os problemas não param por aí: o garimpo está relacionado à contaminação do meio ambiente com mercúrio, substância tóxica que afeta o nosso sistema imunológico. Isso também favorece a proliferação de patógenos", acrescenta o pesquisador.>
"Podemos ainda falar da criação ou da pavimentação de rodovias, que facilitam a migração de espécies transmissoras de patógenos para regiões altamente populosas", lembra Ellwanger.>
Sobre a construção civil, Andrade estudou os desdobramentos da abertura da famosa estrada Belém-Brasília entre os anos 1950 e 1970.>
"Esse processo de cortar a floresta no meio teve muitas consequências, como surtos seríssimos de malária, que foram causados inclusive por um tipo de patógeno mais mortal do que o comumente observado à época", diz ele.>
Na avaliação de Andrade, governos de todas as matizes ideológicas que comandaram o Brasil desde o início do século 20 sempre enxergaram a Amazônia como "uma região a ser explorada".>
"Isso é algo que vai além das diferenças ideológicas e tem a ver com a forma que o Estado brasileiro se constitui, como responsável por adequar a Amazônia aos seus desígnios", analisa o historiador.>
"Os grandes projetos, que envolvem rodovias, hidrelétricas e outros empreendimentos vêm dessa ideia da Amazônia como esse espaço de 'exploração racional' a partir de uma perspectiva colonialista", pontua ele.>
Para o especialista, a ideia de integrar a Amazônia ao resto do Brasil parte do princípio que "essa região precisa ser domesticada aos parâmetros urbanos e industriais de um Brasil que se pretendia moderno a partir dos anos 1940".>
E tudo isso se conecta à discussão mais ampla sobre o risco que a degradação desse bioma representa do ponto de vista da saúde pública.>
"Uma nova pandemia pode surgir justamente a partir da Amazônia? Simplesmente não dá pra saber", admite Andrade.>
O historiador cita o exemplo do zika, um vírus isolado pela primeira vez na década de 1950 nas florestas de Uganda, na África.>
"Quem poderia adivinhar que, cerca de seis décadas depois, esse mesmo patógeno chegaria ao Brasil e causaria surtos onde afetaria o desenvolvimento do cérebro e do crânio de crianças durante a gestação, especialmente em lugares mais pobres?", acrescenta ele.>
"Esses processos todos são muito imprevisíveis e difíceis de controlar", complementa o especialista.>
Além do já citado oropouche, outro vírus endêmico da Amazônia que chama a atenção de pesquisadores é o mayaro, também transmitido pela picada de mosquitos.>
E aqui não dá pra ignorar aquela imprevisibilidade mencionada anteriormente: como você já viu, a ciência está longe de conhecer todos os patógenos que circulam por esse vasto bioma.>
Mas Naveca pontua que "velhos conhecidos" não podem ser vistos com complacência, ou como um problema do passado. É o caso de doenças como leishmaniose, malária ou febre amarela.>
A febre amarela, aliás, causou um surto importante no Brasil em meados de 2018 e 2019 e demandou um reforço nas campanhas de vacinação contra esse vírus.>
E o que fazer diante desse cenário? Será possível evitar que a Amazônia se torne o berço de uma futura pandemia?>
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que sim. Mas essa tarefa passa necessariamente por dois eixos: preservação ambiental e investimento em pesquisa.>
"O mecanismo mais robusto que nós temos para a conservação da Amazônia é a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação", observa Ellwanger.>
"Esses territórios apresentam a melhor taxa de preservação, então trata-se de uma política muito eficiente que precisa ser mantida e, se possível, ampliada", propõe ele.>
No campo da ciência, é necessário fazer levantamentos sobre os vírus que mais circulam, para entender como eles operam e qual o risco de "pularem" para seres humanos.>
"Uma coisa importante é ter regiões sentinela, como áreas onde há atividade humana que ficam próximas do ambiente de floresta, e reforçar o monitoramento de novas doenças ali", sugere Naveca.>
Esse tipo de trabalho foi facilitado recentemente com a chegada de ferramentas e tecnologias mais avançadas, capazes de fazer um mapeamento genômico amplo e rápido.>
Nessa seara, outra ação citada pelos especialistas envolve o acompanhamento de espécies que são os reservatórios naturais de muitos vírus ou outros agentes microscópicos que podem representar um perigo aos humanos.>
É o caso de roedores, primatas, aves e morcegos.>
"Os morcegos, por exemplo, são um reservatório importantíssimo de vírus. E temos trabalhos que demonstram a falta de informações sobre as espécies desses animais que habitam a Amazônia", destaca Naveca.>
"Há uma fauna tão grande ali que existe a possibilidade de surgimento de diversos vírus", complementa o pesquisador.>
Diante da construção desse conhecimento básico, é possível pensar em ferramentas de diagnóstico, além de vacinas e remédios, para o futuro.>
"Só conseguimos combater um problema quando conhecemos ele em detalhes. E é melhor ter essas informações antes que aquilo se torne algo real e concreto", raciocina Naveca.>
Já para Andrade, o risco de futuras pandemias a partir da Amazônia passa necessariamente pela compreensão de que essa é uma região cheia de particularidades.>
"O básico seria ter minimamente uma sensibilidade e uma empatia para compreender que existem outras formas de pensar o mundo, o uso da terra e a relação com a natureza", conclui ele.>
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