Publicado em 13 de janeiro de 2025 às 10:44
Quem entra no apartamento dos brasileiros Isabella Ruiz e Raphael Ballet, em Londres, vê logo uma cesta repleta de brinquedos.>
São da Gaia, uma border collie de 6 anos que também emigrou do Brasil para o Reino Unido.>
A quantidade de brinquedos — 215 quando esta reportagem foi escrita — chama atenção, mas o que impressiona mesmo é que Gaia conhece cada um deles pelo nome.>
Ela tem um dom raro. Gaia faz parte de um pequeno grupo, apelidado por pesquisadores de "cães gênios", com um talento excepcional para aprender nomes de objetos — uma habilidade cognitiva que separa seres humanos de outros animais.>
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Até agora, apenas 41 cachorros no mundo foram identificados com essa habilidade, segundo um grupo de pesquisa da Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste (Hungria).>
Isso não é a mesma coisa que aprender comandos relacionados a ações, como pedidos para sentar ou deitar, por exemplo, como ocorre no adestramento, explicam os pesquisadores.>
Gaia é capaz de buscar os brinquedos em outros cômodos, um a um, quando um adulto pede, sem dicas gestuais dos humanos.>
E tem mais: o que mais impressionou Isabella, Raphael, os pesquisadores e a equipe da BBC News Brasil foi a capacidade de selecionar o brinquedo solicitado por um processo de exclusão. >
Quer dizer, se você colocar um novo brinquedo (cujo nome ela ainda não conhece) entre os objetos já conhecidos, Gaia é capaz de buscá-lo após ser pedido pelo nome que ela nunca tinha ouvido antes.>
Essas habilidades foram testadas e relatadas pelos pesquisadores nos últimos anos — e a BBC News Brasil foi ver de perto.>
A seguir, conheça a trajetória de Gaia, como ela foi descoberta por um grupo de pesquisa na Europa, e o que os estudos sobre o tema conseguem explicar sobre esse talento até agora.>
Gaia chegou à casa de Isabella e Raphael com dois meses e muita disposição para brincar, contam eles.>
"Era um filhote com muita energia, e isso deixou a gente um pouco assustado", lembra Isabella.>
Na época, o casal morava em São Paulo e decidiu buscar ajuda de uma adestradora para criar uma rotina de atividades para Gaia, que incluía brincadeiras de esconder objetos para a cachorra encontrar. >
Com menos de um ano, Gaia sabia identificar os nomes de três brinquedos, o que chamou a atenção da adestradora Carolina Jardim, que tem 15 anos de experiência na área.>
"Até mesmo para um border collie, que é uma raça com muita disposição para aprender, ela mostrou uma facilidade fora do comum de memória", diz Carolina, que também é mestranda em Psicologia Experimental na Universidade de São Paulo (USP).>
Apesar de ter se surpreendido, naquele momento a adestradora ainda não sabia que Gaia tinha uma habilidade tão rara. >
Mas o desempenho de Gaia foi marcante.>
Em março de 2020, quando Gaia tinha cerca de 2 anos, Carolina soube do estudo em que pesquisadores estrangeiros buscavam cachorros com um talento fora do comum para identificar nome de brinquedos.>
"Quando eu soube da pesquisa, na hora lembrei da Gaia e falei com os tutores: é a cara de vocês, acho que a Gaia tem potencial", conta à BBC News Brasil.>
Isabella e Raphael entraram em contato com o grupo de pesquisadores do departamento de Etologia da universidade de Eötvös Loránd, na Hungria, que pediu ao casal para fazer um teste caseiro com a Gaia. >
Para integrar a pesquisa, era necessário que a cachorra soubesse um número mínimo de brinquedos, e em condições controladas, sem interferência de Isabella, de Raphael ou de adestradores.>
Era uma regra, por exemplo, que os brinquedos deveriam ser colocados fora do campo de visão dos humanos e de Gaia.>
O resultado surpreendeu Isabella e o marido.>
"A gente colocou uns 20 brinquedos no corredor de casa e foi pedindo para ela buscar. E ela foi trazendo, um por um. A gente ficou muito impressionado que ela sabia tantos nomes, porque a gente nunca tentou ensinar", conta.>
No mesmo ano, a pesquisadora Claudia Fugazza, PhD em Etologia que lidera o projeto, visitou Gaia no Brasil para realizar alguns testes pessoalmente. >
Além do teste padrão, Fugazza desafiou Gaia a encontrar os brinquedos no escuro e a identificar brinquedos cujo nome ela nunca tinha escutado.>
Fugazza disse que, por mais que pesquisasse esse talento em cachorros e já tivesse conhecido naquele momento outros dois cães com essa habilidade, ela ficou impressionada com Gaia.>
"Foi incrível vê-la em ação e o quão rápido ela aprendia. Fiquei particularmente surpresa quando vi como ela excluía objetos que já conhecia ao ouvir o nome de um brinquedo desconhecido", conta.>
A seleção de brinquedos por meio do processo de exclusão também surpreendeu a equipe da BBC News Brasil, que reproduziu o experimento quando visitou o apartamento de Isabella e Raphael.>
Para fazer o teste, a BBC levou um brinquedo que Gaia não conhecia e deu o nome de "pirulito". >
Sem que Gaia visse, o objeto foi colocado no meio de outros 10 brinquedos conhecidos por ela, em um corredor do apartamento. >
Da sala, Isabella pediu, primeiro, que Gaia pegasse um brinquedo que ela já conhecia — para eliminar a possibilidade de Gaia ir diretamente no objeto desconhecido simplesmente por ser uma novidade.>
Em seguida, ela pediu para Gaia pegar o "pirulito" — brinquedo que a cachorra nunca tinha visto ou escutado o nome. >
Ao ouvir a nova palavra, Gaia foi até o cômodo ao lado e voltou com o pirulito, o brinquedo novo.>
"É uma habilidade cognitiva impressionante porque os seres humanos também fazem isso. Se você colocar vários objetos juntos e pedir a uma criança para pegar um objeto cujo nome ela nunca ouviu antes, ela é capaz de raciocinar por exclusão e pegar o objeto novo", explica Fugazza à BBC News Brasil.>
"Eles inferem que, como aquele brinquedo novo é o único desconhecido, e os outros têm um nome que eles já conhecem, o novo é aquele ao qual você está se referindo.">
Quando a pesquisa começou, em 2018, Fugazza diz que o objetivo era estudar como os cães entendiam o que os seres humanos falavam. >
Segundo ela, o grupo não sabia que existiam animais capazes de reconhecer palavras de objetos — até conhecer um cachorro que já possuía essa habilidade linguística.>
"Aquilo me intrigou muito, porque a linguagem por meio de palavras é uma característica do ser humano. Mas a gente pensou: se tem um, pode ter mais. E começamos a procurar.">
Gaia entrou oficialmente para a pesquisa em 2020 e foi a primeira cachorra brasileira a ser identificada como gifted word learner dog (em português, um cachorro com talento de aprender palavras). >
Até então, havia cinco cachorros de outros países já certificados com esse talento.>
Naquele momento, segundo Fugazza, os pesquisadores tinham uma dificuldade muito grande em tornar o estudo conhecido e encontrar mais cachorros com essa habilidade. >
Então, durante a pandemia, eles criaram um desafio internacional de cães gênios, com a participação dos seis cachorros, incluindo a Gaia.>
A brincadeira consistia em duas fases: na primeira, os cachorros tinham que aprender 6 objetos em uma semana. >
Na segunda fase, eram 12 brinquedos em uma semana. >
A disputa foi transmitida ao vivo pelo canal do YouTube "Genius Dog Challenge".>
Gaia gabaritou nos dois desafios, acertando todos os objetos.>
O mais surpreendente, contudo, de acordo com a pesquisadora, foi perceber que, dois anos após o desafio, os cachorros ainda lembravam do nome de objetos com os quais perderam o contato.>
"Pedimos aos donos de cachorros para esconder os brinquedos por dois anos para fazer um teste de memória. E ficamos impressionados em ver que a maioria dos cachorros lembrava de uma grande parte dos objetos", conta.>
Quando esse teste de memória foi feito com Gaia, ela lembrou de nove de 12 brinquedos.>
A pergunta que Isabella e Raphael mais recebem nas redes sociais, em um perfil onde compartilham a rotina da Gaia, é: Como eles ensinaram o nome dos brinquedos? >
"A gente não ensinou, ela aprendeu brincando", diz Isabella.>
Estudos realizados pela Universidade de Eötvös Loránd indicam que, segundo o que se sabe até agora, a habilidade de aprender palavras não pode ser ensinada. O que é possível é que um cachorro que já tem essa habilidade aprenda novas palavras.>
"No início da pesquisa, eu estava convencida de que era possível ensinar ao menos alguns nomes. Mas falhamos em todas as vezes que tentamos", afirma Fugazza.>
Em um dos experimentos, o grupo de pesquisadores selecionou 39 cachorros de diferentes raças (19 adultos e 15 filhotes) para ensinar nomes de brinquedos. >
Eles passaram dois meses com sessões de brincadeiras que envolviam esses objetos, reproduzindo o que os donos de cachorros com essas habilidades contaram que faziam. >
No fim do período, apenas um cachorro havia aprendido o nome de brinquedos.>
"Parece ser um dom, que ou o cachorro tem ou não", diz a pesquisadora.>
Uma das questões que mais intriga os pesquisadores — e o público — é: por que alguns cachorros têm essa habilidade e outros não?>
"A gente ainda não tem essa resposta. Pode estar associado a um conjunto de fatores. Pode ser um fator genético, pode ser do ambiente em que eles vivem, ou pode ter relação a uma exposição desde muito novos a várias palavras enquanto brincavam. Essas são algumas hipóteses", diz Fugazza.>
"A única coisa que a gente sabe é que eles não aprenderam de forma sistemática, por meio de treinamento, mas de forma espontânea".>
A pesquisadora diz que a maioria dos donos de cachorros que participam do projeto são como Isabella e Raphael: pessoas comuns, com uma "vida normal", sem especialização em técnicas de adestramento.>
"No geral, eles não sabem dizer como os cachorros aprenderam as palavras, porque eles nunca tiveram a intenção de ensinar. Mas a percepção deles é que os cachorros têm muito mais disposição para brincar do que outros cachorros", afirma.>
Apesar de mais da metade dos cachorros da pesquisa serem border collies — dos 41 cachorros, 23 são desta raça — Fugazza lembra que a maioria dos border collies não têm essa habilidade de aprender palavras>
"Eu tenho um border collie e ele não sabe nenhuma palavra", diz, rindo. "Além disso, há cachorros de outras raças na pesquisa, como shitzu, além de vira-latas".>
Além dos 23 border collies entre os 41 cães identificados pela pesquisa, há também outros quatro cachorros que são misturas com border collie, três labradores, dois lulu-da-pomerânia, além de nove cachorros de outras raças ou vira-lata.>
Os cachorros foram encontrados em 9 países: Estados Unidos, Reino Unido, Brasil, Canadá, Noruega, Hungria, Holanda, Portugal e Espanha.>
Fugazza destaca que a habilidade dos cães para aprender palavras é diferente da capacidade de aprender comandos e ações, o que a maioria dos cachorros consegue aprender por meio de treinamento.>
"Para aprender nomes de ações, os cães usam os princípios de aprendizagem por condicionamento, formando associações. Na presença de um determinado estímulo, como o som de 'senta' ou 'deita', eles produzem um comportamento específico, que gera uma recompensa. Esse é um mecanismo de aprendizagem amplamente difundido e que não está relacionado à linguagem", explica.>
"Já no aprendizado de palavras, estamos falando de uma habilidade cognitiva de linguística, algo que pertence à espécie humana, mas que esses animais, de alguma forma, aprenderam em atividades do dia a dia, brincando".>
Ainda não se sabe quais mecanismos esses cachorros usam no processo de aprendizagem e se, de alguma forma, se assemelham ao usado por crianças para aprender palavras. >
No entanto, segundo Fugazza, os estudos realizados indicam que os cães usam diversos sentidos para reconhecer os objetos.>
"Em experimentos que fizemos no escuro, observamos que eles são mais devagar para pegar objetos, o que indica que eles usam principalmente a visão. Mas foi interessante ver que, na ausência de luz, durante as buscas por brinquedos, eles usam outras habilidades sensoriais como olfato e tato", destaca.>
Se um cachorro sabe os nomes de três ou quatro objetos, é possível que ele seja "superdotado" e consiga aprender novas palavras quando exposto a outros brinquedos, segundo Fugazza.>
"Até onde a gente sabe, se um cachorro sabe três ou quatro nomes, é fácil para ele conseguir ampliar seu vocabulário para 50 ou 100. O mínimo para fazer o teste são dois", afirma.>
Esse número pode parecer pouco, mas a pesquisadora explica que, por mais esperto que um cachorro seja, poucos são realmente capazes de desenvolver habilidades de linguagem.>
"Muitos donos pensam que seus cachorros sabem os nomes de objetos porque eles são muito bons em ler nossa linguagem corporal. Mas, quando você pede a um cachorro para pegar uma bola, você normalmente está dando uma dica visual ou fazendo uma movimentação com o seu corpo que indica o que você quer ou onde o objeto está. Então, o cachorro pega a bola não porque ele sabe a palavra, mas diante do contexto", afirma Fugazza.>
Por isso, para verificar se um cachorro tem ou não uma habilidade relacionada à linguagem, os pesquisadores realizam testes em condições controladas, em que o cachorro precisa identificar os objetos sem qualquer tipo de dica, como foi feito com a Gaia.>
"A gente coloca vários brinquedos espalhados em um cômodo diferente daquele que o tutor e o cachorro estão. Assim, quando o tutor pede para que o cachorro busque um determinado brinquedo, ele não tem como ajudar por meio de um contato visual que direcione o cachorro. O cachorro precisa ir até o outro cômodo sozinho e resolver esse problema, apoiando-se puramente na palavra que ouviu", explica a pesquisadora.>
O número de palavras que um cão pode aprender varia, dizem os pesquisadores.>
Os cachorros identificados pela universidade em Budapeste sabem entre 200 e 400 nomes de brinquedos. Mas há registros na literatura de um cachorro que aprendeu mais de mil palavras.>
"Quanto mais brinquedos ele tiver, mais nomes ele vai saber. A gente não sabe se existe um limite", afirma Fugazza.>
"Os estudos mostram que eles precisam ouvir apenas quatro vezes o nome de um novo objeto para aprendê-lo. E isso leva questões de minutos, o que é impressionante".>
Embora apenas 41 cachorros com essa habilidade tenham sido encontrados ao redor do mundo, os pesquisadores acreditam que existem mais e divulgam informações na página do projeto.>
"Temos pouco acesso a países cuja língua oficial não seja o inglês, e a gente acredita que, por isso, existam muitos cachorros com essa habilidade que ainda não foram descobertos", diz Fugazza, ressaltando a contribuição desses cães para a ciência.>
"Além de ser incrível ver as habilidades que esses cachorros têm, estudá-los pode nos ajudar a entender como a linguagem em seres humanos evoluiu.">
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