Publicado em 5 de outubro de 2025 às 09:32
As três grandes religiões monoteístas (cristianismo, islamismo e judaísmo) são machistas? A resposta mais curta e direta: pode-se considerar que sim, porque elas espelham valores das sociedades que as criaram e as moldaram.>
E, justamente porque a religião se baseia em um repositório doutrinário, elas custam mais a se adaptarem às transformações sociais e culturais.>
Mas é possível ir mais fundo nesse debate para entender melhor as fundamentações dessas três grandes religiões monoteístas acerca da ideia de inferioridade feminina.>
A freira agostiniana, filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, autora de As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina lembra estudos de antropólogas que confirmam que "nos primeiros tempos a divindade maior era a feminina ligada aos corpos femininos capazes de gerar".>
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"A primeira estátua de barro a ser venerada é a de uma mulher em cócoras dando à luz", salienta ela, à BBC News Brasil. "A criação era entendida como obra do feminino. E, em certo sentido, isso é confirmado pela ciência biológica que afirma a primazia do feminino na criação da vida.">
Mas as religiões que acabaram se institucionalizando, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, trouxeram a ideia de um deus macho. "Como chegamos aos monoteísmos e a sua adoração a divindades masculinas? Parece que o caminho foi longo e temos muitas hipóteses", prossegue a teóloga.>
Isso teria começado a ocorrer 8 mil anos atrás, segundo ela. Justamente em um momento em que, naquelas civilizações primitivas do Oriente Médio, a força física passou a ser vista como algo mais importante — para lavrar a terra, para conquistar outras terras, para manter a posse, para escravizar, para guerrear.>
"Interessante notar que da harmonia conflitual da natureza liderada pelo feminino plural foi nascendo uma desconfiança da matéria até se criar o mundo das ideias, das divindades, do espírito", reflete Gebara. "Consequentemente esse mundo forma-se através de hierarquias especialmente masculinas.">
Autor do livro A Constituição de Medina e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o cientista da religião Atilla Kus diz à BBC News Brasil que "a raiz comum que possa justificar" uma ideia religiosa de suposta inferioridade feminina é "o contexto histórico […] em que a força física contava mais do que a força intelectual".>
"Nesse sentido, a mulher não participava tanto quanto o homem da vida social, comercial e econômica", comenta.>
Na definição do teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, "o patriarcalismo antecede as organizações religiosas".>
"Se olharmos para uma perspectiva antropológica, […] as primeiras civilizações já realizavam uma divisão do trabalho, e essa divisão separava homens e mulheres", contextualiza ele, à BBC News Brasil.>
Nessa divisão, os papéis masculinos acabaram sendo aqueles mais ligados ao âmbito externo.>
Quando as religiões foram criadas, elas respondiam a essa organização de mundo. "Assimilaram os valores sociais que estavam postos. No final das contas, as religiões, de maneira geral, privilegiam uma visão masculina", pontua Moraes.>
"Na verdade, essa desigualdade não tem origem exclusiva nas religiões, mas sim nas estruturas sociais mais antigas da humanidade. Desde os tempos primitivos, a diferença física entre homens e mulheres, especialmente no que diz respeito à força física, contribuiu para que os homens assumissem posições de liderança nas sociedades tribais, agrícolas e posteriormente urbanas", acrescenta à BBC News Brasil o advogado e pesquisador Amir Mazloum, cofundador do podcast de cultura islâmica Salamaleiko.>
A base do debate está no pentateuco, um conjunto de cinco livros milenares considerados sagrados que compõem a Torá judaica e estão no início do Antigo Testamento da Bíblia cristã: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.>
"As religiões são muito diversificadas e mesmo aquelas que têm por base comum o pentateuco fazem leituras diferentes a partir de pressupostos diferentes do mesmo texto", contextualiza à BBC News Brasil o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo.>
"Existem muitas formas de se ler, comentar e interpretar o texto bíblico. O texto é o mesmo, mas ele está exposto a interpretações de várias sociedades, com várias influências diferentes. Está exposto no tempo e no espaço a leituras", ressalta ele.>
Por isso algumas passagens são consideradas mais problemáticas do que outras. Por isso um texto pode ser entendido como aquele que deixa a mulher num papel frágil — e o mesmo trecho acaba sendo utilizado também para valorizar o papel da mulher.>
No livro do Gênesis, por exemplo, há o mito da criação do mundo. O texto é entendido por pesquisadores contemporâneos como uma colagem de tradições orais da época e, por isso, conta a mesma história de Adão e Eva no Paraíso duas vezes, na sequência — com nuances um tanto distintas.>
No capítulo primeiro, está escrito que Deus criou "homem e mulher", "os abençoou" e mandou que eles se multiplicassem, sendo responsáveis por dominar todas as demais criaturas.>
Mas aí no capítulo seguinte, há a narrativa de que Deus criou o homem, Adão, fez com que ele caísse "em sono profundo", retirou uma de suas costelas e fez dela a mulher, Eva.>
"No primeiro texto, homem e mulher são iguais. No segundo, o homem é superior à mulher", afirma à BBC News Brasil a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).>
Há um deslocamento no discurso. A mulher deixa de ser também criatura "à imagem e semelhança" do divino para ser apresentada como uma auxiliar feita para que Adão não ficasse sozinho.>
Contudo, o Gênesis foi exaustivamente interpretado de muitas e muitas formas ao longo dos milênios. E há quem veja essa ideia da costela também como um sinal de igualdade — pela localização anatômica, no meio do corpo. Ou mesmo a narrativa como indicando uma complementaridade simbiótica entre masculino e feminino.>
A freira Andreia Cristina de Morais, pedagoga, teóloga e professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) frisa à BBC News Brasil que "em nenhum momento a antropologia bíblica afirma que a mulher é inferior ao homem".>
"Esta equívoca interpretação deriva do modo de compreender o texto bíblico da criação do homem e da mulher no livro de Gênesis", comenta. "Os dois relatos são totalmente diferentes, pois, no primeiro, homem e mulher são criados juntos e, no segundo, Deus cria primeiro o homem e depois a mulher.">
Morais explica que a palavra em hebraico "tsela", que costuma ser traduzida como costela também pode ser lida como "lado". "Portanto, no texto de Gênesis, entende-se que Deus formou a mulher não somente de uma parte do osso do homem, mas do seu lado, isto é, a mulher não é inferior ao homem, e sim, alguém que participa da mesma natureza, destacando a reciprocidade, a paridade e a alteridade entre homem e mulher", interpreta ela.>
"A partir da análise literária da antropologia apresentada no livro de Gênesis, pode-se concluir que o ser humano é criado por Deus com igual dignidade; homem e mulher são igualmente imagem e semelhança de Deus, isto é, não há superioridade ou inferioridade, mas sim paridade e reciprocidade, ambos participam da mesma dignidade de criaturas e filhos de Deus", argumenta a freira.>
"Ao ser tirada do lado do homem, há uma visão de que a mulher foi feita correspondente ao homem, em situação de igualdade", frisa à BBC News Brasil a linguista Ana Azevedo Bezerra Felicio, autora do livro O Amor Não Está à Venda, integrante da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e fundadora do Projeto Agostinhas, em que mulheres cristãs e negras fomentam a discussão do racismo e sua relação com a fé cristã evangélica.>
"O que gosto do texto bíblico é que ambos, homem e mulher, compartilham a mesma dignidade, feitos à imagem de Deus, e a identidade, ou seja, foram criados por Deus. Então a distinção entre os sexos não implica na superioridade de um ou de outro", afirma à BBC News Brasil o pastor adventista Jorge Miguel Rampogna, diretor de Comunicação, Liberdade Religiosa e Assuntos Públicos da Igreja Adventista do Sétimo Dia na América do Sul.>
Mas o debate não se apresenta somente neste trecho. A narrativa prossegue com a expulsão do primeiro casal do paraíso por um descumprimento de uma ordem de Deus. E, segundo o livro sagrado, foi Eva quem primeiro mordeu a maçã e depois a ofereceu a Adão.>
"Tudo o que se refere a sexualidade, em especial a feminina é criticável depois do mito adâmico em que Eva tomou o fruto proibido e o deu a Adão. Esse mito ainda é uma grande referência e de certa forma a chave das proibições do poder das mulheres nas igrejas", comenta Gebara. "No fundo a racionalidade dessas proibições é totalmente mítica e não ousa enfrentar-se às reais possibilidades da vida humana e de todas as vidas.">
A narrativa prossegue com um Deus irado com a desobediência. Que diz para a mulher que ela terá dor ao dar à luz seus filhos, que o desejo dela "será para o seu marido" e que o homem "a dominará".>
Rampogna entende que, sob o prisma religioso, isso não é um mandamento, mas sim uma consequência da "entrada do pecado". "A Bíblia deixa claro que o relacionamento entre o ser humano e Deus foi afetado. Consequentemente, o relacionamento entre homem e mulher também foi afetado", pontua.>
"Infelizmente, ao longo da história e da cultura, ao longo dos séculos, esse comportamento foi naturalizado", admite. "A meu ver, a raiz da desigualdade é espiritual: foi fruto do pecado. A perpetuação dessa desigualdade, contudo, é uma questão cultural.">
"Mas o verdadeiro cristianismo acredita que os dois, mesmo sendo diferentes, são iguais diante de Deus", conclui.>
"Minha perspectiva é que homem e mulher são totalmente iguais mas que possuem papéis diferentes na sociedade, não por questão de capacidade, mas por questão de design divino", avalia à BBC News Brasil o pastor batista Yago Martins, autor do livro Igrejas Que Calam Mulheres.>
Religiosidades à parte, é preciso voltar ao início da argumentação. Segundo os especialistas, não é que as religiões sejam machistas porque os textos considerados sagrados são machistas. Os textos considerados sagrados seriam machistas porque foram escritos por homens em contextos de sociedades patriarcais.>
E as religiões acabaram perpetuando essas ideias de uma época específica.>
Com o advento do cristianismo, essas camadas acabaram mantidas. Jesus, é preciso lembrar, era um judeu. Mas os relatos bíblicos indicam que entre seus primeiros seguidores havia mulheres — e elas assumiam papéis de protagonismo, por exemplo, tendo sido as primeiras a entenderem, segundo o evangelho, que ele havia "ressuscitado" depois da morte.>
"Na perspectiva cristã, Jesus era um rabino, chamado de rabino. Mas não um rabino de uma escola convencional, como as demais. E ele se destacou por ser um rabino que reuniu em torno de si mulheres, com um outro olhar para a mulher", diz à BBC News Brasil o teólogo Raylson Araujo, pesquisador na PUC-SP.>
Mas aí quando o cristianismo se torna uma religião institucionalizada, a partir dos seguidores de Jesus que passam a se organizar e espalhar a fé pelo mundo ocidental da época, novas camadas de machismo começam a se acumular.>
Nas cartas que acabaram fazendo parte do chamado Novo Testamento, há trechos em que dizem que as mulheres precisam ficar caladas nas igrejas — primeira epístola de Paulo aos Coríntios — ou que nenhuma mulher possa ensinar nem ter autoridade sobre um homem — primeira carta de Paulo a Timóteo.>
"Esses textos bíblicos não devem ser utilizados fora de contexto para justificar o silenciamento feminino. Precisam ser lidos à luz do contexto cultural da época", salienta Rampogna.>
Era novamente a religião espelhando as sociedades, no caso o mundo romano e, segundo Araujo, principalmente o mundo grego, "que olhava para a figura da mulher de maneira negativa".>
"Na cultura greco-romana, mulheres eram submissas aos maridos. E isso era a coisa mais normal do mundo", contextualiza o pastor Martins. "O que Paulo disse sobre as mulheres não tinha nada de chocante [para a época].">
Ele ressalta, entretanto, que o mesmo apóstolo escreveu em suas cartas que o marido precisava proteger e cuidar das mulheres como cuidavam de seu próprio corpo. E isso era uma novidade para aquele contexto.>
"Era um texto claramente contra a violência doméstica, já que naquele contexto era comum que as mulheres às vezes deixassem de comer em detrimento da alimentação e do bem-estar do marido. Paulo estabeleceu uma série de cuidados para que a mulher se colocasse em posição de dignidade e de igualdade.">
Ao que parece, olhar para um registro textual com as lentes da época permite enxergar algo além do que pareceria sensato ou insensato hoje. As realidades tinham suas próprias necessidades — e até mesmo onde parece haver atraso, para o contexto da antiguidade poderia na verdade representar um avanço.>
O problema é manter isso ao pé da letra em pleno século 21. "O fundamentalismo bebe na tradição patriarcal. Quanto mais fundamentalista [um grupo ou uma vertente religiosa], mais patriarcal. Porque aí se assume a literalidade do texto e se usa aquilo como respaldo para perpetuar uma tradição dita masculina", analisa o teólogo Moraes.>
"Não podemos negar que havia machismo, dado que no contexto bíblico temos uma sociedade patriarcal", diz à BBC News Brasil a freira, filósofa, teóloga e biblista Zuleica Aparecido Silvano, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.>
Ela ressalta, entretanto, que justamente por se esquecer desse contexto socio-histórico, costuma ser feita uma "má-interpretação" de textos bíblicos.>
Mas haveria espaço para uma revisão desses textos? Gebara é pessimista. "Creio que dificilmente as igrejas tomarão a iniciativa de rever criticamente suas escrituras, suas teologias e sua legitimação de poderes", diz ela.>
"O tempo fará isso através de outros caminhos, como por exemplo a diminuição de fiéis, a laicização dos Estados, o crescimento da consciência crítica em diferentes processos educacionais, a recuperação do amor ao próximo e da misericórdia como comportamentos humanos sem os quais a vida não subsistirá sobre a face da Terra", completa a teóloga.>
No mundo islâmico o fenômeno foi equivalente, afirmam os especialistas. Por um lado, é preciso entender a doutrina como resultado de um contexto cultural, histórico e social muito machista. Por outro, justamente com esta visão, pode-se entender que o próprio Alcorão trouxe avanços a mulheres que, naquela época e naquelas sociedades, não tinham nem sequer direitos mínimos.>
"O islã surge no século 7 em uma sociedade tribal profundamente patriarcal, onde mulheres, antes do islã, eram herdadas como propriedade, enterradas vivas ao nascer e não possuíam qualquer direito legal", comenta o também advogado Walid Mazloum, cofundador do podcast Salamaleiko . >
"Nesse contexto, a revelação do Alcorão trouxe avanços revolucionários para as mulheres: o direito à herança, ao divórcio, à propriedade, ao voto, à participação na vida pública e até mesmo à escolha do marido", diz. >
O cientista da religião Kus explica que o islã estipula uma "divisão de papéis" e, como surgiu em uma época e em uma sociedade "em que a mulher não tinha voz, não tinha vez, era excluída", acabou dialogando com esse contexto.>
"Quando se analisa o texto corânico, vê-se que ele na verdade vira de ponta-cabeça toda aquela tradição que excluía as mulheres, que tirava das mulheres até o papel de ser humano", comenta.>
Há menções nas escrituras, por exemplo, de que o testemunho de um homem valeria pelo de duas mulheres ou que a mulher deveria receber metade da herança que coubesse a um homem. A questão aí, segundo os especialistas, é justamente comparar com o anterior: havia um avanço, já que antes do islã às mulheres não era reservado nada.>
"Portanto, a ideia de que o islã, em sua essência, seria machista, é uma leitura distorcida", completa Amir Mazloum. "O que existe, muitas vezes, é a interferência de culturas locais, patriarcais tanto no Oriente quanto no Ocidente, que aplicam seletivamente trechos religiosos para justificar desigualdades que são, na verdade, culturais.">
Ele ressalta que o islã "não é um obstáculo à valorização da mulher". "O obstáculo, muitas vezes, é a cultura local.">
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