Publicado em 9 de novembro de 2025 às 10:40
"O trabalho sexual me afetou profundamente. Meu corpo está muito fraco e estou mentalmente destruída." A vida de Chandrika* como trabalhadora sexual começou com uma cerimônia religiosa. >
Aos 15 anos, ela foi levada a um templo e casada simbolicamente com uma deusa. >
"Na época, eu não entendia o significado do ritual", conta ela à BBC. Chandrika tem agora quase 40 anos e trabalha como prostituta há quase 20 anos.>
O estado de Karnataka, no sul da Índia, está realizando um estudo para identificar pessoas como Chandrika, que se tornaram trabalhadoras sexuais após serem iniciadas na tradição das devadasis.>
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A tradição devadasi, ou das "escravas de Deus", teve origem no sul da Índia há mais de mil anos. Inicialmente, elas atuavam como artistas nos templos, destacando-se no canto e na dança. Com o tempo, o sistema devadasi passou a se assemelhar mais a uma forma de prostituição legalizada.>
Embora as proibições tenham começado durante o período colonial em muitas partes da Índia, Karnataka só ilegalizou a prática em 1982. No entanto, ela continua existindo até hoje.>
As devadasis que vivem em aldeias podem ter um parceiro íntimo e também atender clientes. Muitas migram para cidades como Bombaim para trabalhar em bordéis.>
Após sua cerimônia de consagração na cidade de Belgaum, Chandrika voltou para casa e viveu normalmente por quatro anos. Então, uma parente a levou para a cidade industrial de Sangli, prometendo-lhe um emprego como empregada doméstica. Mas a deixou em um bordel.>
"Os primeiros meses foram muito difíceis. Eu me sentia mal. Não conseguia comer nem dormir direito", lembra Chandrika. "Pensei em fugir, mas aos poucos acabei aceitando.">
Chandrika tinha apenas 19 anos, pouca escolaridade e mal compreendia o híndi ou o marata, as línguas faladas em Sangli.>
"Alguns [clientes] me agrediram fisicamente, outros me insultaram. Era muito difícil suportar", continua.>
Entre os clientes do bordel havia estudantes universitários, motoristas, advogados e trabalhadores braçais.>
Chandrika conheceu seu companheiro, um caminhoneiro, através do trabalho sexual em Sangli.>
Juntos tiveram uma filha e um filho. O companheiro cuidava das crianças enquanto Chandrika continuava trabalhando no bordel, onde atendia entre 10 e 15 clientes por dia.>
Alguns anos depois do nascimento do segundo filho, seu companheiro morreu em um acidente de trânsito, e ela voltou para Belgaum — de onde conversou com a BBC por meio de um intérprete.>
Nem todas as devadasis trabalham em bordéis, e algumas nem sequer se dedicam ao trabalho sexual.>
Ankita e Shilpa, ambas de 23 anos, são primas e vivem em uma vila no norte de Karnataka. Assim como Chandrika, elas pertencem à casta dalit, um grupo que sofre forte discriminação na Índia.>
Shilpa abandonou os estudos após apenas um ano, e sua consagração aconteceu em 2022. Ankita estudou até cerca dos 15 anos, e seus pais organizaram a cerimônia em 2023. Após a morte de seu irmão, ela foi pressionada a se tornar uma devadasi.>
"Meus pais disseram que queriam me consagrar às deusas. Eu me recusei. Depois de uma semana, pararam de me dar comida", conta Ankita.>
"Eu me senti muito mal, mas aceitei pelo bem da minha família. Vesti-me de noiva e me casei com a deusa.">
Ankita segura um colar de pérolas brancas e contas vermelhas, que simboliza essa união. Nem sua mãe nem sua avó eram devadasis. A família possui uma pequena parcela de terra, mas que não é suficiente para alimentá-los.>
"Existe o medo de que, se ninguém for iniciada, a deusa nos amaldiçoe", explica.>
As devadasis não podem se casar, mas podem ter parceiros íntimos que sejam legalmente casados com outra mulher.>
Ankita recusou todas as investidas de homens e ainda trabalha como diarista na lavoura, ganhando cerca de 4 dólares (cerca de R$ 21 por dia).>
A vida de Shilpa deu uma reviravolta inesperada. Após sua iniciação, ela começou um relacionamento com um trabalhador migrante.>
"Ele se aproximou de mim porque sabia que eu era uma devadasi", lembra.>
Como muitas mulheres devadasis, Shilpa vivia com o companheiro em sua própria casa.>
"Ele ficou comigo apenas alguns meses e me deixou grávida. Durante esse tempo, me deu 3.000 rúpias (cerca de R$187). Não reagiu à minha gravidez e, um dia, simplesmente desapareceu.">
Shilpa estava com três meses de gestação e se sentia confusa.>
"Tentei ligar para ele, mas o telefone estava fora de serviço. Nem sequer sei de onde ele é originalmente.">
Ela não procurou a polícia para denunciá-lo. "Na nossa cultura, os homens não vêm até nós para se casar", explica.>
M. Bhagyalakshmi é diretora da ONG local Sakhi Trust e trabalha há mais de duas décadas com mulheres devadasis. Ela afirma que as iniciações continuam ocorrendo apesar da proibição.>
"Todos os anos conseguimos impedir que três ou quatro meninas sejam consagradas como devadasis. Mas a maioria das cerimônias acontece em segredo. Só ficamos sabendo quando uma jovem engravida ou tem um bebê", diz.>
Bhagyalakshmi explica que muitas mulheres carecem de serviços básicos, têm alimentação inadequada, pouco acesso à educação e medo demais para pedir ajuda.>
"Pesquisamos 10.000 devadasis no distrito de Vijayanagara. Vi muitas mulheres com deficiência, cegas e outras mulheres vulneráveis sendo obrigadas a entrar nesse sistema. Quase 70% não tinham lar", declarou à BBC.>
Os parceiros íntimos frequentemente se recusam a usar preservativos, resultando em gestações indesejadas ou transmissão do HIV.>
Bhagyalakshmi estima que cerca de 95% das devadasis pertencem à casta dalit, e o restante a comunidades tribais.>
Ao contrário do passado, as devadasis modernas não recebem nenhum tipo de apoio ou renda dos templos.>
"O sistema devadasi é pura exploração", afirma ela enfaticamente.>
As devadasis, tanto atuais quanto antigas, se reúnem no templo Saundatti Yellamma, em Belgaum, para um festival anual, mas as autoridades afirmam que nenhuma iniciação ocorre no local.>
"Hoje é um crime punível. Durante os festivais, colocamos cartazes e folhetos para avisar as pessoas de que medidas rigorosas serão tomadas", diz Vishwas Vasant Vaidya.>
Vaidya é membro da Assembleia Legislativa de Karnataka e também integra o conselho diretor do templo Yellamma. Em entrevista à BBC, ele afirmou que o número de devadasis ativas diminuiu drasticamente.>
"Hoje podem haver entre 50 e 60 devadasis aqui na minha circunscrição", comenta. "Ninguém promove a iniciação devadasi no templo.">
"Erradicamos a tradição devadasi graças às nossas ações firmes", assegura.>
O censo mais recente realizado pelo governo de Karnataka, em 2008, identificou mais de 46.000 devadasis no estado.>
O dinheiro que Chandrika ganhava com o trabalho sexual ajudou-a a escapar da pobreza. Para proteger os filhos do estigma, ela os enviou para internatos.>
"Sempre me preocupei com minha filha", diz Chandrika.>
"Quando ela tinha cerca de 16 anos, a casei com um parente para que não precisasse se tornar uma devadasi como eu. Hoje, ela vive com o marido.">
Chandrika atualmente trabalha com uma ONG e realiza testes de HIV regularmente.>
"Estou envelhecendo; dentro de alguns anos não poderei mais exercer o trabalho sexual", afirma. Por isso, planeja abrir uma frutaria.>
Shilpa quer proporcionar uma boa educação para sua filha. Ela se indigna com a tradição devadasi.>
"Quero que isso termine. Não vou transformar minha filha em uma devadasi. Não quero perpetuar esse sistema", declara.>
Ankita diz que deseja se casar e, finalmente, se livrar do colar de pérolas.>
*O nome de Chandrika foi alterado para proteger sua identidade.>
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