Publicado em 13 de julho de 2023 às 06:32
Durante dez meses, um desequilíbrio intestinal severo causado por uma bactéria fez com que a aposentada Sônia Maria Vitor Oliveira, de 67 anos, tivesse diarreias incontroláveis e persistentes.>
"Eu sofria noite e dia, sem controle algum do meu corpo. Precisei usar fraldas e cheguei a perder 45 quilos", conta ela. >
A bactéria Clostridioides Difficile, que causou o problema de saúde de Sônia, está presente no organismo de qualquer pessoa.>
No entanto, quando há uso prolongado ou descuidado de antibióticos, as bactérias podem se deslocar, causando o quadro chamado de colite pseudomembranosa, apontam especialistas.>
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Trata-se de uma inflamação do cólon, região central do intestino grosso, que causa febre, dor abdominal e diarreia. >
Sônia, por exemplo, precisou usar muitas medicações diferentes nos últimos anos devido a pressão alta e diabetes, passou por um transplante de rim e teve uma infecção grave por covid-19 durante a pandemia. >
O uso prolongado de diferentes medicações, de acordo com o médico Felipe Tuon, que acompanhou Sônia, contribuiu para a disbiose — o desequilíbrio de bactérias na flora intestinal. >
Sem apetite e perdendo peso continuamente, ela foi internada no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba, no Paraná — um dos hospitais universitários que pesquisam transplante de fezes atualmente no Brasil. >
"Passei 63 dias internada, foi um período muito difícil. Os médicos encontraram várias úlceras [feridas] no meu intestino. Quando descreveram isso, fiquei com medo de ter câncer. Mas, depois de alguns exames, constataram que era essa bactéria que estava causando os danos.">
Quando escutou do médico a recomendação de um transplante de fezes, Sônia pensou que se tratava de uma brincadeira.>
"Eu dei risada, mas ele logo me disse que era sério, e depois acrescentou de forma bem humorada: 'É um transplante de cocô mesmo. A senhora topa fazer?' E eu não pensei duas vezes. Disse que se fosse para o meu bem, toparia, sim.">
Também chamado de transplante de microbiota fecal, o procedimento é simples e tem como objetivo transferir bactérias intestinais de um doador saudável para uma pessoa que está com a flora danificada. >
O primeiro trabalho descrevendo esse procedimento foi feito em 1958, mas, no Brasil, o transplante de fezes aconteceu pela primeira vez apenas em 2013.>
Apesar do nome sugestivo, não são literalmente fezes que são colocadas no paciente doente.>
O bolo fecal passa por um procedimento para separar as bactérias "boas", que são os microorganismos presentes no organismo humano que exercem papéis positivos, como ajudar na digestão, fortalecer o sistema imunológico, produzir vitaminas essenciais, competir com bactérias prejudiciais e manter o equilíbrio do microbioma.>
Depois, o conteúdo pode ser injetado como pó, após passar por processo de desidratação, ou líquido, a forma mais utilizada, que precisa ser armazenada em um ultrafreezer (-80°C), o que garante a sua viabilidade por cerca de quatro meses.>
O procedimento é similar à colonoscopia, exame que analisa o intestino grosso. >
Depois de tomar um remédio contra diarreia e ser sedado, o paciente recebe uma injeção do transplante da amostra fecal no cólon através de um tubo de colonoscopia. >
"O remédio contra a diarreia segura as bactérias saudáveis no organismo, o que aumenta as chances de se proliferarem e auxiliarem no tratamento", explica o infectologista Felipe Tuon, responsável pelo projeto no Hospital Universitário Cajuru. >
Para Sônia, o transplante foi um sucesso. "Em dez dias não tive mais diarreias, pude parar de usar fraldas e voltar a sair de casa", conta.>
De acordo com Tuon, entre os 30 pacientes que já foram atendidos gratuitamente pelo projeto, 27 tiveram sucesso na cura dos quadros. >
"Como pesquisador, embora seja empolgado por trazer benefícios, às vezes sou bastante cético", diz o médico. "E é também por isso que o transplante surpreende tanto: realmente os pacientes apresentam uma resposta maravilhosa, muitos cessam a diarreia em 24 horas. Além disso, o procedimento evita necessidade de cirurgia, tempo prolongado de internação e infecções por bactérias multirresistentes." >
Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), outra que oferece transplantes de fezes dentro de um protocolo de pesquisa feito no hospital universitário, a taxa de sucesso também é alta: 11 dos 12 pacientes que passaram pelo procedimento tiveram resultados satisfatórios, segundo informou a instituição à BBC News Brasil. >
Em 2022, locais como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália receberam a aprovação dos órgãos reguladores de saúde locais para realizar o trasplante fecal como opção oficial de tratamento contra infecções recorrentes por superbactérias.>
"Nos Estados Unidos, inclusive, já estão mais avançados: a FDA [órgão regulador equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil, a Anvisa] aprovou dois comprimidos diferentes que funcionam como transplante de microbiota por via oral", explica Eduardo Vilela, gastroenterologista e coordenador do Centro da UFMG. >
Já no Brasil, a técnica ainda não foi aprovada e regulamentada pela Anvisa e, por isso, não pode ser amplamente oferecidas em hospitais. >
As universidades que oferecem o procedimento estão dentro de um protocolo de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa — e devem seguir as regras estipuladas no projeto autorizado.>
A Anvisa afirmou à BBC News Brasil que recebeu recentemente um pedido de "enquadramento regulatório" para este tipo de tratamento. >
"O ‘enquadramento regulatório’ define qual o caminho de regularização necessário para uma nova tecnologia", informou a agência.>
"No momento, os técnicos estudam o assunto e buscam informações em agências internacionais de referência." >
O infectologista Felipe Tuon considera que a história do transplante de fezes está "apenas começando" no Brasil.>
"Ainda é um desafio sem uma legislação específica, mas estamos trabalhando nesse sentido, para que o procedimento seja regulado e que possa ser inspecionado pelos órgãos fiscalizadores, garantindo a segurança para os pacientes", afirma.>
Dentro de seus projetos de pesquisa, tanto o Hospital Universitário Cajuru quanto a UFMG, que atende por meio do Hospital das Clínicas, tentam construir bancos de fezes — locais de estoque de material fecal de doadores saudáveis.>
“É uma forma de facilitar a oferta para os pacientes que atendemos, e nossa ideia é expandir para oferecer material não só para a nossa instituição, mas também para fora”, afirma Tuon. >
Atualmente, os grupos de pesquisadores enfrentam o desafio de encontrar doadores.>
"A triagem é extremamente rigorosa, mais exigente que um transplante de órgão. É feita uma entrevista e uma série de exames de sangue e de fezes para garantir que não ocorra nenhuma transmissão de infecção viral, bacteriana, fúngica ou parasitária", detalha o médico do Hospital Universitário Cajuru.>
Eduardo Vilela, coordenador do projeto da UFMG, complementa que os critérios clínicos incluem não ter doença crônica ou em curso e não usar medicamentos, não ter sofrido infecção gastrointestinal nos últimos seis meses e ter boa saúde cardiovascular.>
O candidato passa por uma bateria de exames completa, com vários testes sanguíneos para detectar possíveis infecções transmissíveis, além de avaliação clínica e laboratorial.>
Por fim, seu material fecal passa por testes moleculares que visam detectar patógenos que não estão causando nenhum sintoma naquela pessoa, mas podem vir a causar no receptor. >
"Já avaliamos mais de 170 doadores, e só 6 cumpriram todos os requisitos necessários", diz Vilela. >
"Conseguir um material biológico perfeito é uma preocupação muito grande, já que a segurança é essencial para quem vai passar pelo transplante.">
No Brasil, poucos centros contam com iniciativas semelhantes, e as doações acabam sendo realizadas conforme a demanda.>
Por ser uma técnica ainda não regulamentada, se há alguém com indicação de transplante de fezes internado em um hospital, o procedimento pode ser realizado com o consentimento do paciente, que assina um termo.>
"Como não há banco de fezes nos hospitais, eles chamam um familiar que passa por toda a triagem", explica Tuon. "É um processo complicado de se fazer dessa forma individual, porque a pessoa tem que coletar imediatamente, analisar esse material, e o outro paciente tem que estar preparado para fazer o transplante. E ainda há chances de não ser um material biológico ideal.">
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