Publicado em 24 de dezembro de 2025 às 06:44
Na letra, na melodia e na voz de Chico Buarque, uma canção de Natal não precisa ter aquele estilo solene de um coral, muito menos a atmosfera melancólica do inverno europeu. >
Para Chico, o Natal também pode ser cantado como uma marchinha de Carnaval, de jeito simples, alegre, descontraído.>
O músico tinha 23 anos e uma carreira ascendente quando, em 1967, foi contratado pela maior imobiliária de São Paulo, a Clineu Rocha S.A., para compor um jingle natalino. >
Na verdade, não exatamente um jingle — que seria uma canção estritamente publicitária, para promover uma marca —, mas uma música sob encomenda que não menciona a empresa, embora fosse utilizada apenas para divulgá-la.>
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Ele criou, então, Tão Bom Que Foi o Natal, canção que saiu em um compacto que a firma distribuiu como brinde de fim de ano a seus clientes. >
Tornou-se uma raridade — e, também, um conflito entre o músico e a empresa.>
"Olha a cidade, que linda/ Até parece deserta/ A meninada dormindo/ de janela aberta", diz a letra de Chico. >
"Papai Noel completa toda coleção/ Boneca, bicicleta, bola, bala e balão." >
A canção tem elementos comuns na obra de Chico, como o clima de crônica e as aliterações e assonâncias que realçam sua poesia.>
O músico, compositor e diretor de arte Bruno Leo Ribeiro, do podcast Silêncio no Estúdio, afirma que a canção de Natal faz parte do início da evolução artística de Chico.>
"Apesar de parecer simples, A Banda, do seu disco de estreia, retrata o Brasil com sutileza e certa crítica social disfarçada. Na canção Tão Bom Que Foi o Natal, parece que ele usa a mesma temática lírica e melódica, trazendo a melancolia de músicas de Natal para essa marchinha", analisa Ribeiro.>
O pesquisador musical Giovani Marangoni nota na composição qualidades próprias da obra de Chico Buarque, apesar da canção ter sido feita para fins comerciais.>
"Ele está muito jovem ali, mas eu consigo ver semelhança inclusive com A Banda, uma ingenuidade, mas uma poética que brinca com as palavras", pontua Marangoni, autor do livro Vivendo de Música na Era Online e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).>
O disquinho distribuído a clientes da imobiliária começa com um narrador apresentando Chico, descrito como "ídolo de velhos, de moços e de crianças". >
"Sem falsa modéstia, queremos crer que essa nossa ideia, a de pedir ao Chico que fizesse uma canção de Natal especialmente aos amigos do escritório imobiliário Clineu Rocha, foi das melhores que já tivemos", diz o narrador.>
O lado B do compacto é um amontoado de jingles promocionais da empresa, veiculados nos intervalos comerciais das rádios da época. >
As musiquinhas eram cantadas pelos chamados "bandeirantinhos", os mascotes da empresa.>
No meio publicitário, foi um sucesso. Em 1968, a iniciativa da imobiliária recebeu menção honrosa na primeira edição do Prêmio Colunistas, um reconhecimento da Associação Brasileira dos Colunistas de Marketing e Propaganda (Abracomp). >
Em tempos sem redes sociais e "excesso de estímulos", a ideia fazia ainda mais sentido, afirma o designer e especialista em marketing João Finamor, professor da ESPM.>
"Um disquinho exclusivo, distribuído como brinde, com música original assinada por um compositor em ascensão, criava exclusividade, prestígio, memória afetiva e diferenciação competitiva", explica Finamor. >
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Chico Buarque já era famoso naquele Natal de 1967. No ano anterior, havia lançado seu primeiro álbum, Chico Buarque de Holanda, com faixas como A Banda, A Rita e Pedro Pedreiro. >
Com a primeira, vencera o Festival de Música Popular Brasileira, em interpretação inesquecível de Nara Leão (1942-1989).>
No ano em que compôs a canção natalina, ele estava em evidência. >
"A contratação do Chico Buarque tinha um objetivo simples e direto: transferir parte do capital simbólico dele para a imobiliária paulistana", explica o administrador de empresas e executivo de marketing João Ciaco, professor da ESPM. >
"Era a tentativa de associar a Clineu Rocha à sensibilidade jovem, refinada e moderna que o Chico representava.">
O ano de 1967 foi agitado, conforme mostra o jornalista Wagner Homem no livro Chico Buarque (Leya, 2012).>
Entre viagens, apresentações na TV e participação em dois festivais, Chico ainda gravou três compactos, o LP Chico Buarque de Hollanda vol. 2 e escreveu a peça Roda-Viva, registrou o jornalista.>
Chico Buarque de Hollanda vol. 2 traz sucessos como Noite dos Mascarados, Com Açúcar, Com Afeto e Quem Te Viu, Quem Te Vê. >
Curiosamente, o álbum tem outra canção festiva não muito conhecida de Chico, Ano Novo.>
"E quem já viu de pé/ O mesmo velho ovo/ Hoje fica contente/ Porque é Ano Novo", diz um trecho da canção.>
Se muito provavelmente o que seduziu o então jovem Chico a compor Tão Bom Que Foi o Natal foi principalmente a verdade incontornável de que todos temos contas a pagar — então, um trabalhinho extra cai bem geralmente —, esta parceria entre Chico Buarque e a Clineu Rocha não teria exatamente um final feliz como se espera de um Natal.>
Nos anos seguintes, o músico e a empresa tiveram atritos. Segundo relatou Chico posteriormente, a imobiliária passou a veicular a canção em rádios, o que seria um desrespeito com o combinado com o artista de manter a gravação apenas no disquinho-presente.>
Em junho de 1977, o cantor falou sobre o caso em entrevista veiculada pelo CooJornal, histórico jornal alternativo que circulou nos últimos anos da ditadura militar. >
Àquela altura, a Clineu Rocha havia fechado as portas — com problemas financeiros, encerrou as atividades em janeiro daquele ano.>
Na entrevista, o repórter do jornal falou: "Aquela imobiliária de São Paulo, a Clineu Rocha, usou com a maior cara de pau uma música tua como jingle". >
Chico completa: "Mas ela foi à falência como castigo [risos]".>
"Eu fiz uma musiquinha, gravei com violão assim, que era para essa empresa distribuir aos seus clientes de brinde no Natal", contou o músico na entrevista. >
"Mas estava escrito: não era gravação comercial, não era para tocar na rádio, nem nada. Agora, há dois anos, usaram no Natal como jingle da firma. Aí, fui lá e processei, e eles me deram a grana porque era um abuso.">
A BBC News Brasil procurou Chico Buarque para saber detalhes dessa história — inclusive, os valores envolvidos na sua contratação e as condições que haviam sido combinadas. >
Sua assessoria de imprensa limitou-se a dizer que não havia como ajudar com tais informações "pois este é um assunto sem relevância dentro da trajetória" do artista.>
Essa postura fica clara pela exclusão da canção em coleções que supostamente abrangem toda a musicografia de Chico Buarque, como o livro Tantas Palavras - Todas as Letras, publicado pela Companhia das Letras.>
Entretanto, no site oficial do músico, Tão Bom Que Foi o Natal aparecelistada em sua obra.>
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O nome Clineu Rocha traz uma história à parte.>
O fundador da imobiliária acabou se tornando uma referência para o setor. Filho de um comerciante e advogado, mudou-se com a família de Descalvado, no interior paulista, para a capital quando criança. >
Era o irmão mais velho dentre os cinco filhos, todos de nome começados com a letra C: Clineu, Clóvis, Clunny, Clarice e Clélia.>
A família enfrentava problemas financeiros, e as crianças costumavam fazer bicos — como engraxate, por exemplo. Quando Clineu Rocha tinha 11 anos, no segundo semestre de 1932, conseguiu um emprego em uma atacadista de tecidos.>
Fez curso técnico de contabilidade e, quando tinha de 19 para 20 anos, foi trabalhar em uma construtora. Na mesma época, decidiu estudar economia. Isso fez com que ele ganhasse a confiança dos diretores da empresa e, aos poucos, foi ascendendo — chegando a chefiar o escritório, cuidando da contabilidade e da engenharia.>
Em 1948, fez uma viagem aos Estados Unidos. Lá, encantou-se com a voracidade e o profissionalismo do mercado imobiliário. >
Quando voltou ao Brasil, quis implementar o sistema americano em São Paulo, criando uma imobiliária que tivesse um método de compra e vendas mais agressivo.>
O primeiro escritório da empresa Clineu Rocha foi aberto em 1950, e o auge ocorreu nos anos 1960.>
Nesse período, a Clineu Rocha funcionava em um prédio próprio, na Avenida Angélica, e contava com 400 corretores.>
Caio Calfat, vice-presidente de assuntos turísticos imobiliários do Sindicato das Empresas de Compra, Venda e Administração de Imóveis de São Paulo (Secovi), afirma que o modelo implementado por Clineu Rocha passou a ser utilizado pelas "principais imobiliárias".>
Uma das inovações trazida pela empresa foi catalogar as opções conforme os bairros da cidade e por faixas de preço. >
Em uma era analógica, a companhia criou filtros que facilitavam a busca, de forma que o interessado conseguia pesquisar dentro da categoria que melhor lhe conviesse.>
A Clineu Rocha também é considerada a introdutora da figura do avaliador, um profissional capaz de atribuir o preço correto para o imóvel. >
Além disso, destacou-se ao instituir um treinamento padrão para corretores e tornou prática recorrente os anúncios em jornal.>
O estilo aguerrido da imobiliária impactou no setor publicitário — o caso do disquinho do Chico Buarque não foi um esforço isolado. >
No seu podcast Zebras na Publicidade, em 2021, o publicitário Washington Olivetto (1951-2024) destacou a trajetória de Clineu Rocha, enfatizando que a empresa dele "era a maior imobiliária do Brasil" e "o maior anunciante do jornal O Estado de S. Paulo".>
A decadência da firma espelhou o momento de crise econômica dos anos 1970, marcado por episódios como o embargo de combustíveis imposto a vários países pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) em 1973 e, dentro do Brasil, por uma resolução do Banco Central que limitou, em 1976, o crédito imobiliário, sufocando o setor. >
O cenário de inflação também dificultava investimentos.>
Hoje, o disquinho da Clineu Rocha virou uma peça rara. >
Como a tiragem do compacto foi pequena, é difícil encontrá-lo em versão física, mas a música vem sendo reproduzida na internet.>
Como Chico Buarque detém os direitos autorais da canção, a reprodução correta da faixa exige a regularização do uso e pagamento para o cantor e para o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).>
Em 2022, a faixa Tão Bom Que Foi o Natal passou a integrar a playlist "Chico Buarque: Raridades Analógicas", material garimpado pelo jornalista e pesquisador musical Renato Vieira e veiculado pela Rádio Batuta, emissora digital do Instituto Moreira Salles. >
Como repercutiu na mídia e entre entusiastas de MPB, isso deu nova vida à quase esquecida canção.>
A especialista em projetos culturais Gisele Jordão, coordenadora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM, diz que a faixa não é amplamente conhecida mesmo entre admiradores de Chico, já que o disquinho teve "baixíssima circulação".>
O músico Bruno Leo Ribeiro brinca: "Eu não conhecia essa história e agora estou fascinado".>
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