Publicado em 1 de novembro de 2025 às 15:02
Quando Cabul, capital do Afeganistão, caiu nas mãos do Talebã, em agosto de 2021, o mundo viu imagens caóticas de afegãos se espremendo no aeroporto, desesperados para fugir. >
Em Washington, capital dos Estados Unidos, o ex-médico da Marinha Safi Rauf iniciava discretamente sua própria missão: ajudar amigos e colegas presos no Afeganistão.>
Ele não imaginava que, enquanto salvava vidas, encontraria o amor, e que, sendo muçulmano, se apaixonaria por uma mulher judia, superando barreiras religiosas e culturais.>
"Com hesitação, comecei ajudando uma pessoa. Deu certo. Depois outra, e mais outra. De repente, aquilo virou uma grande operação, com centenas de pessoas em campo no Afeganistão e dezenas de nós em Washington", lembra Rauf.>
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Rauf, que nasceu em um campo de refugiados e imigrou para os EUA na adolescência, acabou envolvido em uma frenética operação de resgate.>
Foi nesse contexto que conheceu Sammi Cannold, diretora de teatro em Nova York, que tentava tirar de Cabul a família de um amigo. >
"Eu não tinha nenhum contato que pudesse ajudar. Vi um programa especial na TV sobre o grupo de Rauf e escrevi para ele. Ele respondeu que o melhor seria eu ir a Washington e trabalhar como voluntária com a equipe", conta Cannold.>
Ela fez as malas, pegou um trem para Washington, a capital americana, e entrou num centro de operações lotado de veteranos de guerra. "Venho do teatro. Foi um choque cultural enorme", lembra, rindo.>
Cannold não sabia nada sobre o Afeganistão, mas logo se mostrou essencial. "Estava acostumada a lidar com planilhas e comunicação. Acabei virando responsável pelas comunicações. Quem diria?", diz.>
Entre a tensão e o trabalho intenso, algo começou a surgir.>
"Houve atração? Acho que sim", admite Cannold. Ela chegou a buscar no Google a idade de Rauf "para ter certeza de que era jovem o suficiente para sair com ele".>
O primeiro passeio longo dos dois foi às 3h, durante uma noite de espera angustiada pelos evacuados que tentavam cruzar postos talebãs. Caminharam por Washington até o Memorial Lincoln.>
"Parecia cena de filme. Pensei: vou me casar com esse homem?", conta ela.>
O primeiro beijo veio depois, na sacada do centro de operações. Nervoso, Rauf falou sobre carros. Mas o vínculo cresceu rapidamente, mesmo com as diferenças culturais.>
"Cannold perguntava se eu a apresentaria à minha família, e eu dizia que era impossível", lembra ele.>
A família muçulmana de Rauf esperava que ele se casasse com uma mulher afegã, em um casamento arranjado. E Cannold era judia.>
Mesmo assim, seguiram juntos. Uma prova veio quando Cannold o levou ao teatro para assistir ao musical Os Miseráveis.>
"Para resumir: Rauf enlouqueceu. Ficou completamente fascinado, especialmente com Os Miseráveis. Foi a resposta que sonhava", diz ela.>
"Cresci lutando para sobreviver e me identifiquei muito com Marius, o protagonista — um rebelde e um amante", conta Rauf.>
Em dezembro de 2021, Rauf voltou a Cabul para missões humanitárias com o irmão. Mesmo avisado dos riscos, acreditava na promessa de anistia e proteção feita pelo Talebã.>
No último dia de viagem, porém, ele, o irmão e outros cinco estrangeiros foram presos pelos serviços de inteligência ligados ao Talebã.>
Nos primeiros dias, Rauf ficou sozinho em uma cela gelada, subterrânea, de dois metros por dois.>
"O lugar tinha dois metros quadrados. Não havia janela nem cama", lembra.>
Quando soube da prisão, Cannold entrou em pânico em Nova York. Checou a localização dele no Google Maps e viu o marcador sobre a sede da inteligência do Talebã.>
"Não conhecia bem Cabul, mas sabia que aquilo era ruim", diz.>
Durante semanas, não teve notícias.>
Até que Rauf fez amizade com um guarda descontente, que lhe contou precisar de dinheiro para o casamento. Rauf conseguiu que um primo lhe enviasse dinheiro e um celular.>
Do porão, de pé sobre os ombros do irmão para pegar sinal, mandou uma mensagem: "Oi, como você está? Te amo.">
"A primeira ligação veio 17 dias depois. Só saber que ele estava vivo já era tudo", lembra Cannold.>
Durante os 105 dias de cativeiro, Rauf se apegou às lembranças de Os Miseráveis.>
"Nos primeiros 70 dias, não vi o sol. Ficávamos no porão. Comecei a cantar baixinho Do You Hear the People Sing? (Você ouve o povo cantar?). Virou minha canção de resistência.">
As ligações secretas com Cannold continuaram.>
"Eu sussurrava para que os guardas não me ouvissem e ficava debaixo de um cobertor", diz.>
"Além disso, meu irmão estava a meio metro de distância. Às vezes tentava ter conversas muito românticas por telefone com Cannold, mas… era demais.">
As negociações com o Talebã se prolongaram, mas, após 70 dias, foi firmado um acordo para libertar Rauf.>
Sammi Cannold conta que, em determinado momento, o grupo ameaçou executá-lo caso os Estados Unidos não agissem.>
"Decidiu-se que os pais de Rauf e eu deveríamos ir ao Catar, onde ocorria grande parte das negociações, para ajudar a acelerar o processo", relata.>
Cannold voou para o Catar, onde ocorriam as negociações, e lá conheceu os pais de Safi pela primeira vez.>
"Os pais dele não sabiam que eu existia. De repente, estávamos morando juntos por duas semanas", diz.>
Como eles não falavam inglês com fluência, Cannold virou uma espécie de porta-voz da família. Para os conservadores pais afegãos, descobrir que o filho tinha uma namorada judia foi um choque, mas a crise os levou à aceitação.>
"Dou todo o crédito a eles. Foram extraordinários comigo", afirma Cannold.>
Depois de 105 dias preso, Rauf foi libertado e deixou o Afeganistão para se reunir com ela.>
Nos EUA, os dois passaram a viver juntos e se casaram pouco depois. >
A cerimônia misturou tradições afegãs, judaicas e teatrais: convidados usaram trajes afegãos, cantaram músicas judaicas e Rauf dançou com os amigos o número das garrafas de O Violinista no Telhado.>
Em um gesto comovente, Cannold leu no casamento trechos do diário que escreveu durante o cativeiro. >
Um deles, do dia 32:>
"Sonho com o dia em que vou reler isto sentada ao seu lado, em uma varanda. Por favor, por favor, volte.">
Rauf nunca tinha lido o diário. "Era doloroso demais. Mas, no casamento, lemos juntos", diz.>
O anel de noivado carrega um fragmento da fechadura da cela onde ficou preso. "Essa experiência lançou as bases da nossa vida", afirma.>
O casal diz que a tragédia transformou a relação. "Discutimos menos do que qualquer casal que conheço.>
Quando quase se perde alguém, as pequenas coisas deixam de importar", reflete Cannold.>
"Seja o que for que a vida nos traga, nunca será tão difícil quanto o que vivemos", diz Rauf.>
"Estar aqui, inteiros e ainda apaixonados, é um milagre.">
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