Publicado em 16 de novembro de 2024 às 17:44
São nove horas da manhã em Veneza, na Itália. A paz do silêncio envolve as ruas estreitas e os canais da cidade.>
Visitantes que vão passar um dia na cidade começam a descer na lagoa, enquanto Luca Padoan se inclina contra uma parede, perto do rio della Misericordia – um dos canais que cortam o antigo gueto judeu.>
Ele observa o bairro despertar com seus óculos escuros. Alguns turistas se aproximam, perguntando cautelosamente se podem fotografar o barco sandolo artesanal, atracado à sua esquerda.>
"Sempre explico que ele não é uma gôndola, mas sim seu progenitor", conta Padoan, acariciando o remo.>
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As inúmeras gôndolas ornamentadas que navegam pelos canais da cidade são um sinônimo de Veneza. Mas muito poucas pessoas já ouviram falar do parente menos conhecido da tradicional embarcação – o sandolo, que, no passado, era comum em Veneza.>
Caracterizado por uma "onda" de aço sobre a proa e tipicamente pintado de preto, o sandolo é um barco a remo com fundo plano, historicamente utilizado para navegar pelas águas rasas da lagoa e para transportar pessoas e mercadorias de Veneza para o continente.>
"Se você não conhecer as origens da cidade e sua evolução, não irá conseguir explicar a importância histórica do sandolo", afirma Valentino Scarpa, supervisor das nove stazi (estações) onde os barcos do tipo sandolo continuam a transportar venezianos e turistas pelos canais hoje em dia.>
"A profundidade média da lagoa [no passado, era incrivelmente rasa]", explica ele. "Com um barco normal, você não conseguia chegar até lá.">
As primeiras referências escritas aos sandoli (o plural de sandolo, em italiano) datam de 1292.>
Ao contrário das gôndolas, que sempre foram empregadas para transporte, os sandoli eram historicamente utilizados para pescar, disputar corrida e caçar, além de transportar pessoas e materiais de construção através da lagoa.>
Os sandoli são um pouco mais curtos, mais largos e menos ornamentados que suas colegas mais populares. As gôndolas possuem tipicamente duas extremidades pontiagudas: um arco em forma de "S", que ilustra o formato sinuoso do Grande Canal que corta a cidade, e a popa de ferro. Já os sandoli têm uma proa pintada e uma popa plana e aberta – e são menos suntuosos.>
Estas diferenças físicas têm propósitos práticos. Na gôndola, o remador costuma ficar em um dos lados. Já o fundo simétrico do sandolo permite que ele fique no meio do barco.>
Esta posição centralizada do remador oferece melhor distribuição do peso, o que aumenta a velocidade. E seu projeto simétrico permite que o sandolo transporte cargas mais pesadas do que a gôndola, com menor risco de virar.>
Como as gôndolas, os sandoli são normalmente dirigidos com um remo, mas também podem ser empregados dois remos ao mesmo tempo.>
Conhecida como voga alla vaesana, em dialeto veneziano, esta técnica foi empregada ao longo da história em áreas da lagoa como Caorle, Marano e Grado, para praticar a chamada valicultura, um método medieval de criação de peixes pioneiro na lagoa veneziana.>
"Historicamente, todas as famílias tinham um sandolo", conta o remador de sandolo Livio Bon. "Era o meio empregado na cidade para transportar as pessoas, procurar alimento, pescar e transportar materiais.">
Mas o supervisor Valentino Scarpa explica que, quando os venezianos começaram a perceber que a gôndola é mais fácil de dirigir do que o sandolo, os barcos antigos começaram a ser substituídos.>
"É claro que poder dirigir com dois remos [no sandolo] é uma evolução, já que permite navegar com mais rapidez", conta Scarpa. "Mas a gôndola, por ser assimétrica, é mais controlável e mais fácil de remar nos canais pequenos.">
"A gôndola [se tornou] cada vez mais popular, o que levou à autorização de mais gôndolas. Por isso, a categoria de gondoleiro ficou dominante, e o número de sandoli na lagoa diminuiu.">
Atualmente, existem apenas 20 sandolisti (remadores de sandolo) em Veneza, contra 433 gondolieri (gondoleiros).>
Mas, para os poucos sandolisti remanescentes, viajar pelo canal em um sandolo é uma forma única de vivenciar a história de Veneza.>
A maioria acredita que o projeto do barco inspirou a gôndola. Por isso, ele ocupa uma posição de destaque entre muitos venezianos nostálgicos.>
E, mais do que isso, o sandolo pode explorar regiões da cidade que as gôndolas não alcançam. Afinal, as gôndolas são autorizadas a atravessar as regiões onde ficam as nove estações, mas apenas os sandoli podem se aventurar através delas.>
Por isso, passear de sandolo oferece aos turistas a oportunidade única de visitar marcos históricos menos concorridos de Veneza, como o Gueto Judeu, a Ponte dei Greci e a Ponte dell'Olio, entre outros.>
E, por ser menor que a gôndola, o sandolo pode navegar por canais mais estreitos, até bolsões menos explorados da cidade.>
"É um trabalho puramente tradicional, passado de geração em geração, que conta a história de Veneza", afirma Chiara Favaro, filha de um remador de sandolo.>
"Quando você está em um [sandolo], você observa a cidade com outros olhos – uma Veneza oculta, autêntica. O sandolista pode contar coisas que o guia de turismo não sabe, pois muitas histórias costumam ser passadas do avô para o pai e para o filho.">
Foi o caso de Luca Padoan. Ele tem 53 anos de idade e conta sua história, enquanto se senta no banco acolchoado do seu sandolo.>
"Comecei quando tinha sete anos, com meu avô, que tinha um barco parecido, que usávamos para pescar. Faço [agora] este trabalho há 26 anos.">
"A partir de novembro, vou me dedicar à manutenção do barco. Eu pinto de novo, enquanto minha mãe conserta o acolchoamento. É um negócio de família.">
Em março, com a chegada da primavera na Itália, é hora de voltar a remar.>
Como Padoan, Scarpa conheceu o trabalho muito jovem. Também aos sete anos, ele passava os fins de semana aprendendo a remar com seu pai. E, depois de cursar a universidade, ele voltou a Veneza para aprimorar a técnica.>
Hoje em dia, nem todos desejam dar continuidade ao tradicional negócio da família. A queda da atividade entre as gerações também abriu a porta para a entrada de novos remadores, oriundos de famílias, até então, sem a histórica tradição dos sandolisti.>
A prefeitura de Veneza promove concursos para que candidatos a sandolisti possam solicitar licenças para entrar na profissão. Para se qualificarem, os candidatos devem fazer um curso de navegação profissional e precisam ser aprovados em um teste de nado e remo.>
"No começo, eu consertava aparelhos domésticos, depois trabalhei como motorista de táxi e, então, voltei ao conserto de aparelhos", conta outro sandolista, Mariano Pozzobon. Ele enxuga o rosto com um lenço azul, depois de voltar de um passeio com turistas.>
"Cheguei aqui através dos meus amigos e, agora, faço este trabalho há 30 anos.">
Outros sandolisti concordam que não existe outro trabalho que eles prefiram fazer. Operar os barcos tipicamente venezianos é mais do que uma simples profissão.>
"Cada barco é um mundo próprio", afirma Valentino Scarpa. "[É] um trabalho familiar e o amor é passado através das gerações.">
"Não é apenas um emprego com retorno econômico, mas uma paixão. É um trabalho que você só encontra aqui – e faz você se sentir ainda mais veneziano.">
"Quando [os turistas] saem do barco, eles precisam estar em êxtase", explica Livio Bon, enquanto ajuda um casal francês a se acomodar no seu sandolo.>
"Eles precisam sentir o som da água dos canais nos seus ouvidos, a brisa no pescoço, o barco balançando sob o peso do condutor. Eles precisam respirar a beleza.">
"O sandolo permite que você saboreie totalmente a história de Veneza.">
Para passear de sandolo>
Os sandoli de Veneza saem de nove stazi (estações). Os preços são os mesmos dos passeios de gôndola.>
Das nove às 10 horas da manhã, o passeio dura 30 minutos e custa 90 euros (cerca de R$ 553) por barco. O preço pode ser dividido entre os passageiros, com lotação máxima de cinco pessoas. Das 19 h às quatro horas da manhã, os passeios duram 35 minutos e custam 110 euros (cerca de R$ 675).>
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.>
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