Publicado em 5 de julho de 2025 às 17:39
Alerta: contém relatos de pensamentos suicidas>
Abbie tinha 16 anos quando começou a usar cetamina. Foi a primeira vez que ela se sentiu no controle de tudo.>
Os pensamentos negativos que a assombravam desde pequena começaram a desaparecer.>
Doze anos depois, ela ainda luta contra o vício que quase lhe tirou a vida.>
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Após passar um período de desintoxicação, Abbie decidiu falar abertamente para alertar sobre o que torna a cetamina uma droga tão popular — especialmente entre jovens com problemas de saúde mental — e os danos que a substância pode causar a longo prazo.>
O alerta de Abbie vem à tona enquanto é inaugurada a primeira clínica do NHS — o serviço público de saúde britânico — dedicada a ajudar jovens com problemas relacionados à cetamina. São atendidos pacientes de até 12 anos.>
A cetamina é diferente de muitas outras drogas ilícitas por causa da forma como interage com o cérebro.>
Em alguns contextos médicos, a substância é usada como anestésico dentro de tratamentos paliativos em caráter experimental e no tratamento de casos graves de depressão. >
Pequenas quantidades dessa droga podem provocar euforia e excitação, enquanto doses maiores podem levar ao chamado "Buraco K", um estado de dissociação em que o usuário se sente fora da realidade — como se tivesse uma experiência extracorpórea.>
O número de menores de 16 anos relatando problemas com a droga quase dobrou nos últimos dois anos, ultrapassando a cocaína em popularidade entre crianças e adolescentes.>
Quase metade (49%) das pessoas que iniciaram tratamento por uso de drogas em 2023-2024 relatou ter um problema de saúde mental — e mais de um quarto delas não recebia qualquer tipo de tratamento para isso.>
Especialistas alertam que alguns jovens estão consumindo quantidades perigosas de cetamina não só pelo baixo custo e facilidade de acesso, mas também pelos efeitos dissociativos que ela provoca.>
"Estamos vendo uma tempestade perfeita", diz David Gill, fundador da Risk and Resilience, empresa que treina profissionais da linha de frente sobre novas tendências de drogas.>
"Mais jovens estão lidando com depressão, traumas, ansiedade e falta de serviços — e existe uma droga barata que os ajuda a se desconectar.">
A primeira vez de Abbie com cetamina foi exatamente assim. Ela diz que se sentiu "em um lugar de muito poder".>
"Meus pensamentos já não me afetavam negativamente — a vida passava diante de mim, mas eu não precisava me envolver.">
A infância de Abbie foi difícil. Com problemas de saúde mental e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) não diagnosticado, ela abandonou a escola aos 14 anos e mergulhou em um turbilhão de álcool, drogas e relacionamentos problemáticos.>
Apesar do vício que marcou sua juventude, ela conseguiu entrar na universidade, ficou sóbria durante o curso e se formou na área da saúde.>
Inteligente, articulada e determinada, acabou recaindo após dois relacionamentos abusivos e controladores — a cetamina se tornou seu único escape para o trauma.>
Quando procurou ajuda médica, recebeu apenas comprimidos para dormir e foi orientada a "parar com a cetamina".>
"A abstinência era terrível. Eu tremia e vomitava", diz ela. "Não era só decidir parar, como se fosse fácil.">
Logo, um vício mais profundo se instalou.>
"No começo, eu me orgulhava de manter meus valores e não mentir. Mas não conseguia parar e comecei a esconder o uso dos meus amigos.">
A situação piorou. Abbie passou a usar cetamina todos os dias — sem parar. Ela só tomava banho quando ia encontrar o traficante na rua.>
Os efeitos físicos começaram a aparecer: dores abdominais intensas, conhecidas como "K-cramps", a faziam gritar de dor. Ela usava bolsas de água fervente para aliviar — e queimava a pele. Depois, tomava mais cetamina para anestesiar a dor.>
A cetamina é uma droga usada na medicina e veterinária por suas propriedades sedativas, apesar de seus efeitos alucinógenos também a tornarem um composto perigoso quando consumida como substância recreativa.>
Na própria comunidade médica, embora seja amplamente utilizada como anestésico, sedativo e analgésico, a cetamina gera diversidade de opiniões devido às suas fortes propriedades dissociativas.>
No Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS) e nos serviços públicos de outros países, a cetamina é usada como sedativo, anestésico e analgésico.>
Também tem uso generalizado na sedação de animais.>
A primeira molécula foi sintetizada em 1962 pela equipe do professor Calvin Lee Stevens, da Wayne State University, em Michigan, Estados Unidos.>
Dois anos depois, essa molécula foi testada durante um ensaio clínico e foi rapidamente introduzida na prática clínica como anestésico.>
Nos últimos anos, diversos estudos exploraram o uso da cetamina para tratar vícios e casos graves de depressão.>
Esse ciclo de abuso é algo que a professora Rachel Isba, consultora de saúde pública, também vê nos efeitos físicos do uso de cetamina dentro de sua clínica para menores de 16 anos.>
O uso crônico da droga pode causar uropatia induzida por cetamina — uma condição relativamente nova que afeta a bexiga, os rins e o fígado. A inflamação da bexiga pode ser tão grave que requer sua remoção.>
"Os primeiros sinais são dores abdominais fortes, urina com sangue e secreções parecidas com gel vindas do revestimento da bexiga", explica Isba.>
"Os pacientes recebem atendimento amplo: tratamento com equipe de urologia e apoio psicológico e social, quando necessário.">
Sarah Norman conta que se sentiu como uma "espectadora silenciosa" vendo sua filha Maisie, de 25 anos, "desaparecer diante de seus olhos".>
No ano passado, ela descobriu que Maisie era viciada em cetamina, que já havia causado danos possivelmente irreversíveis aos rins.>
"Somos uma família comum", diz Sarah. "Nunca imaginei que ela se viciaria em drogas — ela nem bebe álcool.">
Maisie mantinha segredo por vergonha. Começou usando a droga em festivais, como recreação, mas logo não conseguia mais viver sem ela.>
Seu companheiro acabou indo embora com o filho de três anos.>
"Não tinha mais por que viver", diz Maisie. "Chegou um ponto em que eu cheirava uma carreira [de cetamina] atrás da outra.">
Sua mãe e irmã a levaram ao hospital — ela pesava apenas 32 kg.>
"Os médicos disseram que o corpo dela estava parando de funcionar. Achamos que iríamos perdê-la.">
Maisie precisou colocar tubos de nefrostomia nos rins — que drenam a urina para bolsas externas que ela carrega até hoje.>
Mesmo após a cirurgia, ainda demorou para deixar a droga. Mas, após conseguir uma vaga na desintoxicação, está sem usar há cinco meses.>
Sarah compartilha a história da filha no TikTok e orienta outros pais.>
"Essa droga é horrível. Muitos jovens estão sofrendo com ela", diz. "Mas estou muito orgulhosa da Maisie. Ela vai às reuniões dos Narcóticos Anônimos todas as noites. Não sei se eu teria a força que ela teve.">
Abbie foi recusada duas vezes pelo sistema público de desintoxicação no Reino Unido, ela diz que chegou a considerar o suicídio.>
"Estava tudo um caos ao meu redor, os serviços não ajudavam, e eu só queria acabar com tudo.">
Depois de enviar uma carta de cinco páginas ao comitê que avalia os pedidos, ela finalmente conseguiu acesso a um serviço de desintoxicação e reabilitação.>
"Eu tinha três escolhas: reabilitação, internação compulsória — ou um caixão.">
Ela foi tratada na mesma unidade que Maisie. Diz que está sóbria e orgulhosa do avanço, mas afirma que o tratamento não lidou com seus traumas.>
"Consigo cuidar de mim mesma, estou indo bem. Mas o verdadeiro trabalho começa agora, fora da clínica. E agora que estou sóbria, espero conseguir o apoio em saúde mental que tanto precisei quando usava.">
Um porta-voz do Departamento de Saúde e Assistência Social disse que, como parte do plano de 10 anos para reformar o NHS, o governo pretende ser "mais ousado na prevenção em vez de apenas tratar doenças".>
"Este governo está reduzindo o uso de drogas como a cetamina, garantindo que mais pessoas recebam tratamento e apoio oportunos, e tornando nossas ruas e comunidades mais seguras.">
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