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Burocracia: as idas e vindas nas repartições públicas

Burocracia: as idas e vindas nas repartições públicas

Um juiz tem que mandar ofício para ele mesmo; uma empreendedora vive via-crúcis para abrir uma escola; um arquiteto percorre repartições e espera. Por que?

Publicado em 14 de setembro de 2019 às 21:52

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Pilha de processos em escritório de advocacia. (Vitor Jubini)

Um juiz está respondendo por duas Varas ao mesmo tempo. E precisa de informação que está num processo em uma delas. Assim, tem que mandar um ofício para lá, a ser recebido por ele mesmo.

A situação é hipotética, mas não poderia ser mais verdadeira. É apenas um dos retratos da burocracia brasileira, que vai muito além do Judiciário.

“Manda um ofício para o juiz da outra Vara e acontece de ser o mesmo, infelizmente”, conta o juiz Daniel Peçanha, presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo. “Isso ocorre com comunicações de um juízo para outro e pedido de oitiva de testemunha feito por carta precatória, por exemplo. Tem que ser oficiado porque precisa ficar o registro. Isso fica dentro dos autos. Atrasa bastante porque o ofício tem que ir e voltar. Parece rápido, só que são milhares de processos”, lembra.

Episódios como esse causam transtorno não apenas a quem lida, “de dentro”, com a máquina pública, mas, principalmente, a quem desconhece seus meandros e, ainda assim, precisa dela.

A arquiteta Flávia Biccas decidiu, com duas sócias, abrir uma escola de ensino infantil. Para isso, espera contar com um empréstimo bancário para reformar um imóvel alugado. Mas, para obter a aprovação da verba, ela tem que apresentar uma série de documentos a serem fornecidos pela prefeitura após vistorias no imóvel já reformado. “Parece a história do ovo e da galinha. O que vem primeiro?”, questiona.

“Tivemos que dar entrada no processo na Vigilância Sanitária, o que seria feito apenas após a reforma, mas o banco pede que a gente apresente o protocolo. A vigilância fez a vistoria e, como ainda não tem as adequações, que dependem da reforma (e, para isso, do empréstimo do banco) nos deram uma notificação, mas não multa porque entendem a nossa situação”, diz.

Já o também arquiteto Ruan Venturini percorre prefeituras em busca de autorização para projetos. “Existe caso de o cliente estar tão apressado, ter tanta necessidade de iniciar logo a obra e o alvará não sair, pela morosidade do processo, que ele começa a obra antes mesmo de ter o alvará, o que não é correto, mas compreensível diante desse tempo todo de espera, de demora”.

CARTÓRIOS

Por quê? Para a advogada Rosana Chiavassa, a burocracia está entranhada no Brasil desde sempre: “O Brasil é até hoje, e dificilmente deixará de ser, um país absolutamente cartorário, está na origem do Brasil. Até na criação das capitanias hereditárias tem essa cultura de burocracia”.

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em que ter um agente validando todos os atos. As pessoas têm até que provar que são elas mesmas, com reconhecimento de firma (de assinatura). Parte-se do princípio de que todos são culpado

Rosana Chiavassa - advogada
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A Lei da Desburocratização (Lei nº 13.726/2018) retirou algumas exigências, como o próprio reconhecimento de firma. “A lei não teve coragem de romper mais a burocracia. E uma coisa é existir a lei. Outra coisa é ela ser aplicada. Tem o interesse econômico, cartórios sobrevivem disso. O símbolo da burocracia no Brasil são os cartórios”, resume Chiavassa.

O vice-presidente do Sindicato dos Notários e Registradores do Estado do Espírito Santo, Jeferson Miranda, faz outra avaliação. “Continua a mesma coisa (após a lei de 2018) porque a própria população prefere ir ao cartório para reconhecer firma e autenticar documento. Embora haja reclamações, a credibilidade dos cartórios é grande. Os cartórios são desburocratizantes. Para se fazer um divórcio em cartório é muito simples, pode ir de chinelo e camiseta e em uma hora a pessoa está divorciada”, exemplifica.

Mas não é só no cartório que carimbos e papelada são protagonistas. Flávia, ainda em busca de abrir a escola, passa um bom tempo em repartições municipais. E até já pode dar dicas para quem precisar se aventurar por lá: “Você vai ver vários casos de processos que sumiram. Você consegue ver as pilhas de pastas, do chão até o teto, por cima de armários, por cima de mesas. Escolha uma pasta estampada, que é fácil de localizar e mais difícil de perder”.

SOLUÇÃO É DIGITALIZAR

Um juiz somente tem que enviar um ofício a si mesmo porque – além do fato de estar acumulando funções – tem um papel envolvido na história. “Com o processo eletrônico, isso vai melhorar”, avalia o presidente da Associação dos Magistrados do Espírito Santo, Daniel Peçanha.

“Quando é eletrônico, a informação já vai de um processo para outro automaticamente e fica o registro”, pontua. “Já tem nas Varas de Execuções, que era um atraso danado. A guia de execução segue o preso, se ele é transferido para Cachoeiro tem que mandar o processo todo, fisicamente, para lá. O processo ia acompanhando o preso onde ele ia e isso era um absurdo, levava semanas e às vezes um mês porque demorava para entregar. Com o processo eletrônico, hoje é um clique.”

No Judiciário estadual, 99 unidades, de um total de 313, contam com o Processo Judicial Eletrônico (PJE). Até 2 de dezembro, o PJE deve chegar ao segundo grau de jurisdição.

Processos físicos durante sessão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Digitalização chegará ao segundo grau em dezembro. (Divulgação/TJES)

Por enquanto, a papelada não soma perda de tempo apenas no Judiciário. Nas prefeituras também. “Na era da tecnologia, da informatização, ainda os processos são via papel. Faz o projeto, manda para eles, eles fazem o rabisco e mandam de volta”, conta o arquiteto Ruan Venturim.

E mesmo se você não vai à Justiça ou a repartições municipais, o papel ainda está na sua vida. Ao pagar contas, se não for por meio de conta bancária, ainda é preciso guardar os comprovantes.

O advogado Luiz Gustavo Tardin, especialista em direito civil e do consumidor, diz que se o pagamento foi feito em dinheiro, tem que guardar o recibo. Se for pensão alimentícia, por exemplo, o prazo para guardar é de dois anos. “E quem faz pagamento com depósito no caixa eletrônico ou lotérica, deve guardar o comprovante também”. Sim, aquele comprovante que sai do caixa e, em pouco tempo, as letras nele impressas somem.

Mas o maior acesso a bancos e a utilização de aplicativos diminui a quantidade de papel. “O débito automático também diminui muito isso”, lembra Tardin. Se você faz um pagamento utilizando sua conta bancária, um extrato já é suficiente para evitar a cobrança indevida.

Com esses exemplos é possível inferir que, quanto menos papel, menos burocracia (o meio ambiente agradece). E foi também o que concluiu um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) sobre países da América Latina, entre eles o Brasil. O relatório “Fim dos Trâmites Eternos: Cidadãos, Burocracia e Governo Digital”, publicado em 2018, registra: Na América Latina, a palavra “trâmite” é sinônimo de “dor de cabeça”.

O relatório aponta que o uso do canal digital pode ajudar a solucionar vários dos problemas com os trâmites: em geral, são mais rápidos, mais baratos e menos vulneráveis à corrupção. Mas o canal digital ainda é incipiente na região: somente 7% das pessoas realizaram seu último trâmite ao menos parcialmente de forma digital.

ITÁLIA SUBSTITUIU PAPELADA POR AUTODECLARAÇÃO 

Professor de Ciência Politica do Ibmec-MG, Adriano Gianturco nasceu na Itália. Ele rebate a tese bastante comum de que “só no Brasil” há tanta burocracia. E também diz que não é impossível acabar com ela, embora frise que não é obra do acaso.

Adriano Gianturco, professor de Ciência Politica. (Ricardo Medeiros)

Frases iniciadas com “só no Brasil” têm aplicações para os mais variados assuntos. Um deles é a burocracia. Faz sentido isso?

Não é típico do Brasil, é típico da política e das grandes organizações, o Estado. Uma grande empresa também precisa de processos específicos. Noventa por cento do que as pessoas chamam de “jabuticabas brasileiras” não são.

E por que tanta burocracia, seja aqui ou onde for?

Quando você tem pessoas que vivem do problema, o problema vai persistir. O cartório, por exemplo, tem que ir lá para várias coisas. O cartório foi inventado na Itália, é culpa nossa. No meio acadêmico, por exemplo, a ata de defesa do doutorado, do mestrado, tem validade, o que não faz sentido. A ata é o registro de algo que já aconteceu. Já o despachante é um efeito. É uma forma que a sociedade encontra de minimizar os custos da burocracia porque é muito custoso e chato esse processo. Se a burocracia acabasse, acabaria o trabalho deles também. Mas não é culpa deles.

E como resolver isso?

Na Itália, nos anos 1990, teve uma reforma administrativa. O cerne da reforma era a autodeclaração, para uma série de documentos não precisava de carimbo, essas coisas, só a autodeclaração de que aquilo era verdadeiro. Todo mundo favava: “não vai funcionar, ninguém vai declarar a verdade, aqui não é a Suíça”. Mas funcionou. Para você mostrar se você já fez serviço militar é autodeclaração, não precisa pegar documento no Exercito. Vacina é autodeclaração. Declaração falsa é crime.

Vou me antecipar e dizer que quem ler essa sua resposta vai pensar: “ah, mas para punir quem comete crime a Justiça tem que ser rápida e aqui no Brasil...”

Visto de lá todo mundo tem a mesma percepção estereotipada de que não funcionaria, e funcionou perfeitamente. Claro que deve ter casos de falsidade ideológica. Mas a Justiça italiana também é muito lenta. Qualquer país tem suas peculiaridades.

O senhor concorda que digitalizar procedimentos é uma saída para reduzir a burocracia?

Por um lado isso agiliza, mas também tem o custo de oportunidade. Você está criando um “Grande Irmão” que tudo sabe, um Leviatã, que tem muitos dados à disposição. Por enquanto estamos aplaudindo isso, mas um dia é possível que alguém reclame. Agora, quando se trata do Estado arrecadar, o Estado é eficiente. A Receita Federal, por exemplo, é muito eficiente.

E onde não há eficiência, pode haver brecha para corrupção?

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Quando você tem 20 processos, 15 autorizações a pedir, surge o incentivo a agilizar o processo. Na literatura da corrupção, é “colocar óleo na engrenagem para fazer a máquina andar”. Na Índia, por exemplo, é praxe o cidadão em quase qualquer ocasião que lida com a administração pública, junto com a documentação que ele entrega, colocar uma nota, não precisa nem pedir, se não o processo não anda. Tem como resolver, mas é uma questão política.

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