Publicado em 20 de junho de 2017 às 09:18
Todos os dias Glenda desperta do sofá onde dorme, no máximo, às 5h da manhã. Ao se levantar, já troca as fraldas do filho, que completa 5 anos neste mês. Desse tempo de vida, nenhum dia sequer o menino conheceu outro lugar que não seja um hospital. Nasceu no Dório Silva, na Serra, e só saiu de lá quando foi transferido, em 2013, para o Hospital Infantil de Vila Velha. Flavinho, como é carinhosamente chamado, nunca foi para casa, nem mesmo para fazer uma visita. Durante todo esse período, a mãe não sai de perto do filho.>
A história de amor e dedicação de Glenda Miranda Rocha, 31 anos, começou ainda na gestação. "Tive que deixar os estudos para cuidar da minha gravidez e do meu filho. Eu descobri que ele tem uma malformação na coluna e hidrocefalia. Então, eu fiz acompanhamento médico. Quando tive uma complicação, a bolsa se rompeu e fui ganhar ele lá no Dório Silva. Eu tive que ficar internada na UTI, porque me recusei a receber alta. Eu estava com alta, mas o meu filho ficou internado na UTI neonatal".>
Flávio Guedes, o Flavinho, nasceu no dia 27 de junho de 2012, quando Glenda estava de 8 meses. "Lá ele teve todo o acompanhamento. Após o nascimento, já tinha feito a cirurgia de coluna, que é da mielomeningocele, e fez a da cabecinha dele (da válvula peritoneal), por volta dos sete meses. Depois dessas duas cirurgias, descobrimos que ele teve a síndrome Arnold Chiari tipo 2, que pode fazer uma ou mais paradas respiratórias e levá-lo a vir a óbito. Mas, graças a Deus, ele está bem melhor", comemora a mãe.>
Por um ano, o menino permaneceu internado na Serra. A mãe se dividia entre a UTI e uma casa de acolhimento no hospital. Mas chegou a hora dela voltar para casa. "Eu saí da casa materna para dar lugar a outras mães que vinham de longe e não tinham lugar para ficar. Voltei a dormir na casa dos meus pais, que foram os únicos que me apoiaram.">
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Nesse período, ela ia e voltava de Cariacica para Serra. "Fiquei meio transtornada com isso. E a médica queria transferir ele para o Hospital Infantil de Vitória, porque já estava com uma idade que iria se tornar paciente pediátrico. Mas nem ela nem o diretor conseguiram essa vaga. Ela me disse para eu correr atrás dessa transferência e que era para eu fazer o que eu pudesse pelo meu filho", lembra.>
Com muita luta, em 10 de julho de 2013, Glenda conseguiu uma vaga para o menino no Hospital Infantil de Vila Velha. "A única vez que ele saiu do hospital foi essa. Ele tem o hospital como o único lar dele. Ele não chegou a conhecer o lar verdadeiro dele. A médica fez várias tentativas de tirar ele da ventilação mecânica, para suportar mais o oxigênio e poder levar um suporte maior para a casa. Mas isso seria impossível, porque eu não tenho mais casa. Não tenho mais suporte familiar", lamenta.>
MORTE DO AVÔ>
Glenda se refere à perda do pai, seu amigo e companheiro de cuidados com o Flavinho. "Ele era o único que revezava comigo, sempre foi um ótimo avô, presente ao lado do neto. Vinha aqui, visitava o meu filho. Mas, infelizmente, não tenho mais o meu pai. Ele teve uma parada cardíaca. Isso faz uns dois anos e vem contribuindo muito para o meu tempo de moradia no hospital. Minha mãe é viva, mas não consegue me ajudar, porque tem problemas de saúde.">
"Eu fico direto, sou mãe 24 horas. Eu cuido dele, dou banho nele, faço curativo da barriguinha dele, pego no colo. Faço todas as atividades que uma mãe comum faz. Eu durmo num sofá e faço as refeições no hospital. Acordo, no máximo, 5h da manhã para trocar ele, porque agora tá fazendo xixi. Antes ele tinha uma bexiga neurogênica, mas agora ele está fazendo espontâneo. Ajudo os enfermeiros a trocar fralda, a trocar roupa de cama...">
No decorrer do dia, ela vai ao pátio, conversa com as outras mães ou lê um livro. Glenda só sai do Infantil para resolver alguma situação pessoal na troca de acompanhante. "O pai dele vem e fica aqui, aí eu saio. O pai vem de 15 em 15 dias.">
SAÚDE>
Flavinho não anda e nem fala. "Mas ele faz fisioterapia para poder mexer as perninhas. Ele 'fala' com o olhar, ele se expressa com o olhar, mexe a boquinha chamando mamãe. É um menino muito carinhoso. Todo mundo conversa com ele e ele interage. Tem uma interação muito boa. Ele assiste televisão, brinca com as pessoas. E gosta de ver desenho e novela.">
Segundo a mãe, o filho precisa sair da ventilação mecânica para ter alta. "Mas a gente não tem para onde ir. A casa da minha mãe é inadequada. Dentro da casa não tem a comodidade para ele, é mal planejada, não é adequada para ele, segundo a avaliação da Justiça.">
"Hoje, se o Flavinho tivesse uma casa adequada, ele poderia sair do hospital. Uma casa que respondesse às adequações dele. Por ele ser uma criança especial que não anda, usa traqueostomia, se alimenta pela gastro, seria muito propício para ele um ambiente que seja mais arejado. Eu e ele não temos uma casa. Ele ia precisar de toda uma estrutura hospitalar. Eu não tenho condições de equipar. É muito sofrimento para mim. Não faço muita ideia de quanto custaria esses equipamentos." >
FÉ>
Ao ouvir a história de Glenda, é impossível não perguntá-la de onde vem essa força. "Ah, eu tiro a força de Deus. Sempre eu tive essa fé em Deus. Eu peço para Ele me dar apoio, porque nessas horas que eu preciso de estar do lado do meu filho. Eu penso mais em Deus. Ficar cansada a gente fica, mas enquanto estou de pé, tenho que pedir para Deus me dar força e saúde para ficar bem para o meu filho.">
Como Glenda não pode trabalhar e vive cuidando do menino, ela recebe um auxílio do governo de um salário mínimo por mês. "Compro fralda com esse dinheiro. Ele usa umas 100 por mês. Super G, Extra G ou fralda geriátrica.">
E justamente em uma campanha para conseguir fraldas para o Flavinho que o Gazeta Online conheceu a história dele. Porque, para piorar a situação da família, Glenda foi assaltada em frente ao hospital. Para ajudá-la, um grupo de voluntários resolveu arrecadar fraldas. "Roubaram o meu celular e a minha bolsa. Mas a minha vida é mais importante do que as coisas.">
SONHO>
Apesar de todo esse drama, ela não perde a esperança de ter um lar. "O meu desejo mesmo é ter uma casa para mim e para o meu filho. Um ambiente que ele possa se desenvolver mais. Ele sempre teve o acolhimento dos enfermeiros, mas quero dar continuidade a esse carinho dentro da minha própria casa. Eu quero ter esse lugar para viver feliz ao lado do meu filho, cuidar bem dele.">
DOUTORES PALHAÇOS>
A ONG que está fazendo a campanha para ajudar o Flavinho é a Doutores Palhaços, que faz visitas aos pacientes do Hospital Infantil em Vila Velha.>
O Palhaço Liko, que é o representante comercial Lindomar Barreto, 43 anos, conta que Glenda é um exemplo. "A mãe dele é super alto astral. É uma pessoa fantástica. Não abandona o filho. Ela canta, brinca, é um tapa na nossa cara, que as vezes reclamamos de tão pouco. Ele não fala e agora manda beijo para homem também, porque antes só mandava beijo para as mulheres (risos). Ele estala a boquinha", diz Liko.>
O palhaço destaca que todos os domingos voluntários da ONG visitam o hospital e Glenda sempre está lá. "Antes ela tinha o pai para revezar, mas ele morreu. Eu não sei dizer ao certo o que o Flavinho tem, porque a gente não pergunta. A gente está lá de palhaço. Nossa intenção é levar alegria.">
OPINIÃO MÉDICA>
Acompanhando o menino há 4 anos, a pediatra Maiza Uliana, do Hospital Infantil de Vila Velha, explica que Flavinho teve uma malformação na coluna (mielomeningocele) que evoluiu para a síndrome Arnold Chiari tipo 2. Por conta dessa síndrome, ele desenvolveu outros problemas de saúde, que afetam a bexiga e a respiração, por exemplo.>
"Ele nasceu com a mielomeningocele, foi operado a tempo, mas uma das consequências foi essa síndrome. Ele tem uma apneia de origem central e para de respirar. Por isso, precisa de um apoio da ventilação mecânica. Ele já chegou a ficar sete dias sem a ventilação. Mas, quando faz a apneia, temos que reconectá-lo ao ventilador.">
A bexiga do Flavinho não tem controle. "Ele faz infecção urinária de repetição. A bexiga não tem autonomia para funcionar. Ele não faz o xixi todo. Tem sempre um resíduo, o que facilita a infecção urinária", afirma.>
Segundo a pediatra, essas sequelas são definitivas. "Ele interage, dá um sorriso, mas não fala. Até os 2 anos, ele era completamente dependente da ventilação. Agora já conseguimos tirar uns períodos, o deixando só com o oxigênio. Mas ele não consegue ficar muito tempo sem o ventilador.">
Sobre a possibilidade de o menino deixar o hospital, a médica diz ser possível, mas exige uma casa adequada e, principalmente, o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar. "Aqui dentro do hospital ele tem tudo que precisa. Não é só pediatra, tem nutricionista, nutrólogo, enfermeiro, uma equipe. O grande problema é que, como a mãe é sozinha, ela fica 24 horas com ele. Acaba morando dentro do hospital. Para ele ter alta, teria que ter uma estrutura de residência, espaço, rede elétrica que atendesse, estrutura de banho e ela precisaria morar perto de um pronto-atendimento, para ser socorrido com rapidez, caso tenha uma intercorrência, como parar de respirar. Também necessita da equipe multidisciplinar. É uma grande estrutura 24 horas ininterrupta.">
A médica avalia que, se Glenda tivesse apoio familiar para ajudá-la nos cuidados com o filho, a alta dele seria mais possível. "Como ela é sozinha, vai ter que ter um suporte de uma pessoa com ela. Se ela precisar se ausentar por pouco tempo, pode ser que nessa saída, a cânula obstrua, e ele morra.">
Convivendo há tanto tempo com Glenda, Maiza conta que, mesmo com toda essa situação, a mãe do Flavinho é uma pessoa otimista e tranquila.>
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