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Grades, cercas e muros: insegurança muda o cenário da cidade

Grades, cercas e muros: insegurança muda o cenário da cidade

Muros altos, câmeras e grades passaram a fazer parte das fachadas

Publicado em 9 de junho de 2019 às 00:11

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Em Jardim da Penha, condomínio ganhou muro e portão elétrico. Antes, acesso ao local era livre, como se vê na foto abaixo, de 1986. (Marcelo Prest)

A casa em que mora a estudante Thalia da Silva, de 20 anos, na Praia do Canto, em Vitória, passou por transformações nos últimos anos, principalmente na parte externa. Os muros baixos foram trocados por grades altas e cerca elétrica. A mudança ocorreu na tentativa de trazer mais segurança para a família. “Tínhamos medo de alguém entrar e roubar, outro dia pularam o muro da vizinha”, contou.

Os elementos colocados na fachada da residência já nem chamam a atenção de quem passa pela rua. Aliás, são comuns em casas e prédios das grandes cidades do Estado. Mas essa mudança na arquitetura urbana, na verdade, se intensificou não só aqui mas também em todo o país como uma resposta ao aumento da criminalidade a partir do final da década de 1990.

Essa é a “arquitetura do medo” – como é chamada por especialistas – que, devido à insegurança, resgata elementos utilizados em construções da Idade Média, em presídios e até em campos de concentração. Entre eles, muros muito altos, grades e guaritas em casas e condomínios. Além disso, há aparatos mais modernos e tecnológicos, como as câmeras de videomonitoramento e os alarmes.

Na casa de Thalia, na Praia do Canto, muros baixos deram lugar a grades altas. (Ricardo Medeiros)

Todos esses aparatos começaram a ser adotados pela população na busca por mais segurança. A constatação faz parte de um estudo realizado pelo professor do mestrado em Segurança Pública da UVV, Pablo Lira, que deu origem ao livro “Geografia do Crime e Arquitetura do Medo”. “Antes não eram comuns grades nas janelas e os muros eram mais baixos”, exemplifica Lira.

Apesar da incorporação desses elementos, os objetivos são distintos daqueles de épocas antigas, como explica o professor. Na arquitetura do chamado sistema feudal da Idade Média (terras administradas por um senhor e seus camponeses), por exemplo, os elementos de autoproteção eram utilizados para inibir a invasão de povos bárbaros. Hoje em dia, a intenção é inibir a invasão de criminosos.

Outra referência é a arquitetura prisional, em que os elementos como cercas elétricas, videomonitoramento e torres de vigilância são utilizados para impedir a fuga de presos. Nos espaços residenciais, por outro lado, esses sistemas foram incorporados para trazer mais proteção contra a violência.

Guarita na Praia do Canto se assemelha a uma antiga torre de vigilância. (Marcelo Prest)

Em algumas casas e condomínios, há uma combinação de arame farpado e cerca elétrica que lembra não somente os presídios, mas também os campos de concentração nazistas da década de 1940, em que o objetivo era impedir a fuga.

PROJETOS

Prédio em Jardim Camburi: grades e poucas janelas. (Marcelo Prest)

 

Atualmente, todos os elementos de segurança já são pensados desde o projeto de uma construção de casa ou condomínio, segundo a presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Espírito Santo (CAU-ES), Liane Destefani. “As questões mais levadas em consideração são os muros, os sistemas de abertura e fechamento das portas e janelas e os sistemas tecnológicos de vigilância remota e anti-intrusos.”

O diretor da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), Augusto César Andreão, diz que inclusive os aparatos de segurança passaram a ser um dos principais fatores levados em conta por clientes na hora de escolher um imóvel. “Esses equipamentos são importantes. Se o prédio estiver num local inseguro, muitas vezes não vai ter nem demanda”, afirma.

Cerca elétrica, grades e portão em Jardim da Penha. (Marcelo Prest)

CONDOMÍNIOS

Os condomínios fechados começaram a surgir no final do século XX. Para o professor Pablo Lira, esse tipo de construção é o ponto máximo da arquitetura pensada para oferecer sensação de segurança uma vez que fecha o espaço para a convivência dos moradores.

Lira aponta questões negativas nesse tipo de mudança nas construções das cidades que podem ser observadas. “O problema da arquitetura do medo é quando ela acaba, contraditoriamente, projetando insegurança para a cidade. São cercas elétricas instaladas em muros baixos que podem ocasionar problemas para crianças e idosos, por exemplo. Há também prédio sendo construído sem janela para rua e as pessoas não conseguem nem enxergar quem passa no local”, aponta.

Muro alto com cerca elétrica em Bento Ferrerira. (Marcelo Prest)

HISTÓRICO

O professor explica que o crescimento da criminalidade que levou à disseminação desse tipo de arquitetura tem uma explicação histórica. Com o agravamento da crise do café, o governo federal estimulou a economia com a construção de indústrias na Grande Vitória entre as décadas de 1960 e 1970.

A súbita transformação da estrutura econômica implicou em alterações na estrutura demográfica, como a intensificação dos fluxos migratórios destinados para a Grande Vitória. À medida em que os anos passaram, os projetos industriais foram se desenvolvendo sem o planejamento de políticas urbanas e sociais adequadas.

As pessoas chegaram na região e encontraram emprego na construção das indústrias, mas grande parte dessa população não tinha qualificação necessária para ocupar os postos de trabalho. Muita gente ficou desempregada. Em consequência da vulnerabilidade social e econômica, veio também o aumento da criminalidade, que passou a se destacar a partir da metade da década de 1980.

“A população passou a investir na autoproteção. Agora estamos chegando já no nível em que a pessoa quer fazer a segurança pública dentro de casa, até com posse e porte de arma. Isso é um problema porque a população, ao invés de procurar solução coletiva, está se fechando”, pontua.

O professor de sociologia Victor Nunes Rosa também destaca que o crescimento da população em situação de rua e usuários de drogas também contribuiu para essa mudança comportamental e urbanística.

CENÁRIOS ANTIGOS

DE CACO DE VIDRO A PORTARIA ELETRÔNICA

A busca por elementos que garantam mais segurança nas residências está presente tanto nas áreas nobres quanto na periferia dos municípios no Estado. É o que aponta o professor do mestrado de Segurança Pública da UVV, Pablo Lira, no livro “Geografia do Crime e Arquitetura do Medo”.

Ele ressalta que na região periférica é mais fácil encontrar grades em janelas e portas e até mesmo cacos de vidro nos muros. Já nas áreas consideradas nobres, isso é feito de forma mais sofisticada. Os equipamentos de segurança são incorporados pelas casas e edifícios, dando novos contornos.

Geomarts Lahass mostra o sistema de segurança de seu condomínio, na Praia de Itaparica, em Vila Velha. São 48 câmeras para inibir a prática de crimes. (Vito Jubini)

“A arquitetura do medo é um elemento de distinção econômica e somente quem pode pagar é que vai comprar um apartamento com diversas características que ela traz. Empresas se aproveitam disso para vender um imóvel”, pontua.

TECNOLOGIA

 

O aposentado José de Souza, de 70 anos, mora há cerca de 30 anos numa casa em São Pedro, Vitória. Ele disse que as grades do portão e da janela vieram depois, para proteção. (A Gazeta)

 

O técnico em eletrônica Leonardo Silva Pinheiro afirma que 90% das pessoas que procuram a empresa dele já foram vítimas de furto ou roubo dentro de casa.

Os moradores têm investido cada vez mais em câmeras e alarmes, inclusive passaram a controlar as imagens pelo celular através de um software. Atualmente, tem crescido a demanda pela portaria virtual. As entradas e saídas de moradores e visitantes são monitoradas por uma central, sem a presença de um porteiro.

“Cerca de 90% das pessoas que procuram a empresa já relataram furto e roubo dentro de casa. A tecnologia está muito presente em áreas nobres, mas tem ganhado força em bairros simples porque passou a ser financeiramente acessível”, afirma.

O mercado de segurança privada também tornou-se lucrativo. O presidente do Sindicato das Empresas de Segurança do Estado do Espírito Santo (Sindesp-ES) diz que ele movimenta no Espírito Santo R$ 720 milhões por ano.

Atualmente há 10.769 seguranças regularizados que são contratados por empresas públicas e privadas e passaram a ocupar condomínios. “É uma forma de vigilância que contribui para a segurança. No entanto, não substitui o papel do policial.”

POLÍTICAS PÚBLICAS

Para Pablo Lira, investir na “arquitetura do medo” – e como consequência reduzir os espaços de convivência – não é a solução para melhorar a segurança pública. O problema deve ser pensado de forma mais ampla. Ele ressalta ser necessário investir em políticas públicas para que as pessoas se sintam seguras e os espaços de convivência possam ser ampliados.

“Países que conseguiram reduzir a violência foram para outros caminhos, investiram em políticas mais amplas, aumentando a vigilância natural, com a apropriação do espaço público. No interior tem praça, igreja e a população se conhece, isso é uma alta vigilância natural”, explica.

ANÁLISE

Diminuição da sociabilidade

As mudanças na arquitetura devido ao aumento da violência em prédios, casas e condomínios podem ser algo sedutor, mas trazem problemas: diminuem espaço de convivência. Quanto mais fechado for o local, menor contato com os vizinhos, ocorrendo a diminuição da sociabilidade. A partir do momento em que o contato público deixa de existir, aumenta a marginalização social. O poder público tem contribuído com o isolamento de certa parcela da população. No final de semana, por exemplo, o número de ônibus é reduzido e as pessoas da periferia têm dificuldade de acessar áreas consideradas nobres.

Edson Luz Knippel, professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Segurança Pública

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