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MPES vai investigar pressão de religiosos sobre família para criança não fazer aborto

MPES vai investigar pressão de religiosos sobre família para criança não fazer aborto

Menina tem 10 anos e engravidou após constantes abusos praticados, segundo ela, pelo tio. Promotor de Justiça de São Mateus vai investigar atuação de grupo. Ouça os áudios da conversa

Publicado em 16 de agosto de 2020 às 21:01

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Religião: a intolerância também é observada entre as pessoas que se dizem cristãs
Religião: sob a justificativa de serem cristãos, o grupo procurou a família da criança para tentar convencê-la de não fazer o aborto. (Divulgação)

Diante do drama de uma criança de 10 anos grávida, após ter sido vítima de estupro, a família da menina foi pressionada por um grupo de religiosos para que ela não fizesse o aborto, procedimento que foi autorizado pela Justiça. Entre as pessoas que foram até a casa dos familiares da garota, uma mulher chegou a falar que "Deus permitiu" a gravidez. A situação se tornou insustentável, e a avó da criança passou mal. As visitas foram registradas em áudios e vídeo, aos quais A Gazeta teve acesso neste domingo (16). A Promotoria de Justiça vai investigar a atuação do grupo.

O caso ocorreu em São Mateus, no Norte do Estado, e, conforme depoimento da menina à polícia, ela engravidou. O tio é suspeito de abusar dela desde os 6 anos. A história ganhou repercussão, e a família acabou sendo procurada por religiosos que tentavam convencer a avó da criança que, por ser parente, teria condições de evitar o aborto, caso dissesse que não aceitaria o procedimento. Se assim fosse feito e a menina levasse a gestação adiante, seria atendida por uma equipe médica especialista em gravidez de risco. 

Durante a conversa, as pessoas ainda afirmavam que o aborto seria um procedimento doloroso para a criança, que seria melhor um parto, e que haveria juízes cristãos dispostos a ajudar no processo para evitar a interrupção da gravidez. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, também foi citada, como se o grupo tivesse proximidade com a representante do governo federal para intervir no caso. 

Em um dos momentos, um homem diz que o feto não tem culpa, e a avó retruca que é uma "criança gerando outra criança". Então, ela ouve: "Mas, se tem uma alma ali, foi Deus que colocou". Ela se mostra inconformada com a declaração, e questiona: "Deus permitiu uma barbaridade dessa?" A resposta: "permitiu".

O promotor de Justiça Fagner Cristian Andrade Rodrigues, da Vara da Infância e Juventude de São Mateus, vai abrir investigação contra o grupo de pessoas que aparece falando nos áudios. 

Aspas de citação

A difícil escolha íntima a cargo da família da vítima de violência não pode sofrer interferência política, religiosa ou de qualquer natureza. Trata-se de uma violação abominável aos direitos humanos

 Fagner Cristian Andrade Rodrigues 
Promotor de Justiça
Aspas de citação

É também do promotor a solicitação para a Justiça autorizar o aborto, uma vez que a gravidez é resultado de um estupro, e cuja decisão favorável saiu na sexta-feira (14). O juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara de Infância e Juventude, deu a ordem para fosse feita a "imediata análise médica quanto ao procedimento de melhor viabilidade para a preservação da vida da criança, seja pelo aborto ou interrupção da gestação por meio do parto imediato".

A menina chegou a ser internada no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), em Vitória, mas a equipe médica se recusou a realizar o aborto, apresentando como justificativa o tempo de gestação, que é de 22 semanas e quatro dias. Entretanto, a criança foi levada neste domingo (16) para Recife, em Pernambuco, onde uma unidade de saúde tem os protocolos para realizar o procedimento na idade gestacional atual. 

CONFIRA OS ÁUDIOS E AS TRANSCRIÇÕES

Primeira gravação da conversa entre grupo de religiosos e a avó da menina 

Transcrição da primeira gravação

Homem – Pra não (me) dar uma liminar para fazer o aborto nela. Então, o que a gente tá querendo? Tá querendo evitar que isso aconteça. Tá querendo salvar o bisneto, querendo salvar essa vida.

 Avó – E salvar ela também. 

Homem – Só que eu, mesmo com o projeto, com todo o suporte, com tudo isso aí, com esse aparato, eu não tenho força, mas a senhora tem. Por quê? Porque a senhora tem essa voz. Eu não sou família dela. Mas se a senhora se pronunciar contra. Olha, eu quero... (interrompe)


ABORDAGEM À AVÓ DA MENINA

Segunda gravação da conversa entre grupo de religiosos e a avó da menina

Transcrição da segunda gravação

Homem (o mesmo) - A gente aqui, como cristão, a gente tá aqui para oferecer essa ajuda. Só que essa voz, quem tem, quem pode ter peso é só a senhora. Então, se a senhora permitir, eu gostaria de colocar um áudio de uma médica para a senhora ouvir o risco que tem. Por exemplo, o procedimento que eles querem fazer é o quê? Induzir um parto normal. Tem que aplicar uma medicação na vagina dela, como se fosse um parto normal, sentir contrações, sentir dor. 

Mulher – É mais um trauma. 

Homem – Sentir todo esse processo traumático como se fosse um parto normal. É isso que vai acontecer agora, caso façam.

ARGUMENTAÇÃO DO GRUPO

Terceira gravação da conversa entre grupo de religiosos e a avó da menina

Transcrição da terceira gravação

Homem (o mesmo) – Eu tenho um corpo médico especialista em gravidez de risco, situação de criança de 10, 11 anos. Em São Paulo, em cidade do interior, é quase que, não deveria ser normal, mas é coisa que acontece com um certa frequência. Aqui, para a nossa cidade, que é do interior, parece uma coisa absurda, mas nas grandes capitais, no Nordeste, acontece. E essa equipe que eu tô colocando à disposição da senhora é uma equipe de especialistas, médicos, ginecologistas, médicos, que sabem lidar com esse tipo de situação e tão dando toda a garantia que fazer o que eles querem fazer agora é mais risco do que levar a gestação à frente e fazer uma cesárea com anestesia, com tudo correto. Então, assim. Eu estou aqui em nome do projeto.

Homem – Eu tô aqui em nome do projeto, mas eu tenho juízes cristãos, que são do bem, que estão do nosso lado. Eu tenho um corpo de médicos inteiro em São Paulo, Brasília. Inclusive, eu conversei ontem com uma assessora da ministra Damares. Só para você saber o nível de informação que eu tenho aqui.

Mulher - Olha onde chegamos 

Homem – A gente não tá brincando. A ministra Damares (Alguém fala: A gente tem acesso a isso também). Então, a gente quer que a senhora use a voz, que só a senhora pode ter, para defender esse neto da senhora. 

Avó – Mas eu vou te falar a verdade. 

Alguém fala – Neto de um monstro. 

Homem (o mesmo) – Mas a criança não tem culpa, o bebê que tá ali. 

Avó – Mas ela vai gerar uma criança. Ela tem dez anos, é uma criança gerando outra criança. 

Homem (o mesmo) – Mas, se tem uma alma ali, foi Deus que colocou. 

Avó – Não foi Deus, não. 

Homem – A alma é só Deus, mas quem colocou ali não foi Deus. 

Homem – O mal. 

Mulher – Deus permitiu. 

Avó – Deus permitiu uma barbaridade dessa? 

Mulher – Permitiu.... 

Homem – Para que ele tirasse o mal. 

Avó/outra parente – Resumindo, resumindo, a gente não podia nem estar aceitando vocês aqui. 

Homem – Não, a gente entende.

Avó/outra parente – A gente tá a favor ao aborto, sim, porque é uma criança gerando outra criança. 

Avó – Eu mesmo falei: 'eu não vou poder ver, porque se eu ver' (sic). 

Parente – A gente tá atrás de tudo para poder abortar, sim. É o que a gente pode falar. A gente nem poderia estar aceitando vocês aqui.

 Homem – A gente respeita. 

Parente – Primeiro que imprensa nenhuma teve acesso ao nome dela. E vocês estão sabendo. 

Homem – É porque cê vê o que Deus tá querendo fazer. É o que Deus tá querendo fazer. 

Parente – Deus tá fazendo.... (pessoas falam ao mesmo tempo) para poder realizar tudo. É uma criança. A gente entende a causa de vocês. 

Homem – Eu perdi dois filhos, né? Mas por aborto natural, não foi ninguém quem induziu, então, eu sinto essa dor. 

Avó – os netinhos meu, graças a Deus são vivo. Criei a minha netinha com dez anos. Eu agradeço a Deus por não ter matado a minha filha e não ter levado para outro canto....

CONVERSA COM A FAMÍLIA

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