Relatório da Abin para filho do presidente extrapola até o padrão Bolsonaro

Abundam os casos em que o presidente cruzou o limite entre o público e o privado. Se confirmadas as suspeitas de que órgão oficial orientou a defesa do senador Flávio Bolsonaro, terá sido o caso mais despudorado

Publicado em 18/12/2020 às 04h00
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seu filho Flávio Bolsonaro, senador pelo Republicanos-RJ
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seu filho Flávio Bolsonaro, senador pelo Republicanos-RJ . Crédito: Carolina Antunes/PR

Em pouco menos de dois anos de gestão, abundam os casos em que o presidente Jair Bolsonaro cruzou o limite entre o público e o privado. Sem constrangimento, tentou emplacar como embaixador nos EUA, sem se atentar para um currículo mínimo para o posto, o seu filho Zero Três, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o mesmo que transportou convidados do seu casamento em helicóptero da Presidência. Também sem papas na língua admitiu, na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, que para proteger família e amigos interferiria em cargos oficiais “e ponto final”.

Se confirmadas as suspeitas de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu ao menos dois relatórios para outro filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), terá sido o caso mais despudorado a vir à luz do patrimonialismo do presidente, em uma extensa lista de espoliação da coisa pública em benefício próprio. A mobilização da estrutura oficial, que teria envolvido ainda o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI) e o Palácio do Planalto, teria o objetivo gravíssimo de auxiliar a defesa a anular a investigação que corre contra o Zero Três na Justiça, por denúncias de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio.

O caso foi revelado no dia 11 deste mês pela revista “Época”, que trouxe a público dois documentos que teriam sido enviados por WhatsApp a Flávio, com estratégias para levantar provas de que funcionários da Receita Federal teriam acessado ilegalmente dados sigilosos da movimentação financeira do senador. Duas das cinco orientações que constam no material foram seguidas pelas advogadas. Uma terceira que foi parcialmente cumprida foi a de substituição de servidores da Receita.

Instados pela ministra Cármen Lúcia (STF) a prestar esclarecimentos, o general Augusto Heleno e Alexandre Ramagem, o mesmo que esteve no olho do furacão no debate sobre a interferência de Jair Bolsonaro na PF, negaram que os órgãos que comandam tenham confeccionado os relatórios. A resposta era esperada e pode esconder jogo retórico. O material, caso tenha mesmo partido do GSI e da Abin, não seguiram os trâmites normais, mas caminhos paralelos. Não viriam em papel timbrado e com carimbo oficial.

A defesa de Flávio Bolsonaro confirmou à “Época” a autenticidade e a procedência dos dois documentos, que tinham o escancarado título de “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Abin e Ramagem não negam, por outro lado, que em 25 de agosto participaram de uma reunião no Palácio do Planalto, em que estavam Jair Bolsonaro e as advogadas de Flávio Bolsonaro, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach.

O encontro, por si só, já é fato aviltante ao princípio da impessoalidade apregoado no artigo 37 da Carta Magna. Não há nenhum interesse público, dos brasileiros, no uso de aparato oficial para auxiliar a defesa de senador denunciado pelo Ministério Público por peculato, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa. A produção dos relatórios, se confirmada, incorreria também em crime de responsabilidade.

As revelações somam-se a outras, antigas e recentes, de esculhambação do republicanismo que deveria reger a Presidência, como desvio de finalidade de R$ 7,5 milhões doados para a compra de testes rápidos da Covid-19, que foram parar no programa Pátria Voluntária, liderado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Neste mês, veio à tona ainda a notícia de que a cobertura da festa de inauguração de uma empresa de Jair Renan Bolsonaro, o Zero Quatro, foi realizada gratuitamente por uma produtora que presta serviços ao governo federal.

Eram parcas as chances de que Bolsonaro, ao portar a faixa presidencial, como que por encanto se transformasse em um estadista. Os quase 30 anos que passou no Congresso como deputado foram mais devotados a casuísmos do que ao interesse público. Não chegaria a ser uma surpresa, embora se mantivesse como fato estarrecedor, que o presidente abusasse do cargo para locupletar o clã familiar. Mais grave ainda é que em seu caminho sequestre órgãos oficiais com missões nobilíssimas como GSI e Abin. As revelações merecem profundas investigações, assim como o suposto acesso irregular pela Receita a dados pessoais de Flávio Bolsonaro. Não há qualquer vitorioso quando as vantagens são indevidas.

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