Bolsonaro erra duas vezes: brinca de Deus e joga vacina no varejo político

Diante da esperada organização governamental para negociar a aquisição de possíveis vacinas, o presidente é consumido pela soberba, quando deveria unir esforços e promover a articulação para imunizar a população com eficácia e segurança

Publicado em 21/10/2020 às 20h03
Presidente da República, Jair Bolsonaro durante plantio de árvore amazônica no marco do Programa Caixa Refloresta.
Presidente da República, Jair Bolsonaro durante plantio de árvore amazônica no marco do Programa Caixa Refloresta. Crédito: Anderson Riedel/PR

O presidente Jair Bolsonaro volta a brincar de Deus nesta pandemia, colocando a saúde de milhões de brasileiros sob os seus desígnios, por mais absurdos que sejam. Ao explicitamente politizar a CoronaVac, o presidente abandona a racionalidade em um dos momentos mais delicados da história do país e adiciona mais alguns disparates a uma coleção que não deixa de crescer desde que adentrou o Planalto.

Mesmo que nas entrelinhas, volta a insistir na alucinação ideológica de que a China prepara uma dominação comunista, omitindo que o país é um dos mais importantes parceiros comerciais do Brasil. E da forma mais capitalista possível. Para piorar, de maneira obtusa demais para o líder de uma nação, não compreende (ou finge não compreender) que a "vacina chinesa" é também brasileira.

Bolsonaro acaba incitando à desmoralização do Instituto Butantan, parceiro da chinesa Sinovac no desenvolvimento da vacina, ao afirmar que "povo brasileiro não será cobaia", uma das justificativas para desautorizar o acordo firmado por seu próprio ministro da Saúde para a compra de 46 milhões de doses.

"Para o meu governo, qualquer vacina, antes de ser disponibilizada à população, deverá ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa", reforçou Bolsonaro, externando o óbvio ululante, algo do qual não há o que se discordar. Uma instituição como o Butantan, fundada em São Paulo em 1901 e hoje a principal produtora de imunobiológicos do Brasil, não colocaria sua credibilidade e reputação em jogo por tão pouco, liberando no mercado uma vacina fora dos protocolos.

Até onde se sabe, ninguém defende a vacinação sem autorização dos órgãos competentes. E mais: essa história de "cobaia" é falaciosa, já que a vacina está passando por todos os testes exigidos pelas autoridades mundiais. Ninguém será vacinado se houver riscos demonstrados nessas testagens, realizadas em larga escala.

Curiosamente, é a primeira vez que Bolsonaro demonstra ser tão cientificamente criterioso. Para disseminar o uso da cloroquina, não houve essa preocupação com resultados de testes que comprovassem a sua eficácia. Mas Bolsonaro preferiu adotá-la como uma panaceia capaz de camuflar toda a omissão de seu governo com as medidas de saúde pública mais adequadas quando o novo coronavírus começou a se espalhar pelo território brasileiro. Quando a conduta do então ministro Luiz Henrique Mandetta colocou a pasta no caminho do enfrentamento racional da Covid-19, a solução presidencial foi a demissão sumária dele. Incomodou pela competência.

 A desmoralização pública de Eduardo Pazuello acabou sendo como um déjà vu incômodo, com o militar sofrendo acusações de traição do próprio presidente. Tudo porque o atual ministro da Saúde teve a postura que se espera de um chefe da pasta, articulando-se com governadores para garantir que todos os Estados tenham acesso à vacina, quando ela surgir.  Planejamento, uma palavra que faz falta na administração pública brasileira. Os três ministros da Saúde desta gestão foram escolhidos pelo próprio presidente, todos foram desabonados de alguma forma por ele. Todos erraram e só Bolsonaro conseguiu acertar? Parece difícil de crer.

A Covid-19 já provocou a morte de mais de 155 mil pessoas no Brasil. Ao lado dos Estados Unidos, é a mais longa onda da doença em todo o mundo. Diante da esperada organização governamental para negociar a aquisição de possíveis vacinas, o presidente Jair Bolsonaro é consumido pela soberba, quando deveria unir esforços e promover a articulação para imunizar a população assim que houver comprovação de eficácia e segurança.

No jogo da capitalização política, o governador de São Paulo pode acumular dividendos com a vacina que ajudou a negociar. João Doria, potencial candidato à presidência em 2022, também politiza a questão a seu favor. Não há inocentes. Mas Bolsonaro peca por colocar a própria vaidade acima do interesse público.

Bolsonaro desde o início defendeu a importância de se proteger a economia e impedir o caos social durante a crise sanitária, o que torna um contrassenso a forma como se encontra imunizado contra a vacina. É tão difícil assim encontrar o bom senso e apoiar esses esforços científicos? Sob suas ordens, o Ministério da Saúde reafirmou que não haverá obrigatoriedade, o que pode ser danoso para uma cobertura vacinal efetiva. É muita energia acumulada contra a vacina, o que deixa tudo ainda mais insólito, mesmo em um governo tão desconectado da realidade.

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