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'Falta de empregos não se resolve com leis nem redução de direitos'

"Falta de empregos não se resolve com leis nem redução de direitos"

Ministro do Tribunal Superior do Trabalho afirma que a reforma trabalhista ainda não conseguiu diminuir o desemprego, como era o objetivo inicial, mas destaca a redução do número de ações na Justiça

Publicado em 1 de junho de 2019 às 23:40

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A reforma trabalhista foi editada no final de 2017 com três objetivos principais: diminuir o número de ações trabalhistas, incentivar a geração de empregos e gerar segurança jurídica. Nesta entrevista, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e corregedor-geral da Justiça do Trabalho, Lélio Bentes, destaca que nem todos os propósitos foram atingidos e que alguns pontos precisam ser revistos.

Um deles passa pela “tarifação” de quanto vale a vida humana. “A reforma trouxe uma regra de tarifação dos danos morais, ou seja, os valores são fixados de acordo com o salário de quem sofre o dano, no limite máximo de até 50 vezes a remuneração daquele trabalhador. O que já começa errado”, critica o ministro. “A vida humana não pode ser tarifada e os danos à pessoa e ao trabalhador não podem estar vinculados ao salário que ele recebia”.

Um dos objetivos da reforma trabalhista era reduzir o número de processos. Houve mesmo essa redução?

Logo que entrou em vigor, em novembro de 2017, houve uma redução no número de novas ações, algo em torno de 30%. No entanto, nos meses seguintes, foi registrada uma retomada tímida, mas que não chega nem perto ao que tínhamos em 2015 e 2016. Também se verificou que as reclamações dos trabalhadores estão mais objetivas. Acredito que a justificativa seja o fato de o trabalhador ter que pagar os honorários do advogado da empresa caso não vença a ação. Esse foi um impacto importante da reforma. Na minha avaliação, é questionável essa opção do legislador de reduzir o número de novas ações pela dificuldade de acesso à Justiça. Perceba que essa regra também atinge aqueles trabalhadores que não têm condição de ingressar em juízo, pois vão sacrificar o próprio sustento. Até mesmo eles podem ser condenados ao pagamento de honorários e ficarem devedores por um período de até dois anos. Esta questão está sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação de inconstitucionalidade, entendendo que essa limitação de acesso à Justiça foi exagerada.

Quais foram os impactos da reforma para os tribunais regionais?

Mesmo com a redução de 30% de novas ações, os juízes do trabalho mantiveram sua produtividade de anos anteriores. O índice de julgamentos foi 10% superior ao número de novos processos recebidos, ou seja, tivemos um impacto bastante significado no número de processos que aguardavam a promulgação da sentença. No final de 2017, eram 1,9 bilhão de processos sem sentença e, em dezembro de 2018, esse número passou para 1,1 bilhão. Isso quer dizer que 800 mil ações que estavam em atraso foram colocadas em dia. A Justiça do Trabalho faz uma mediação entre os agentes da relação trabalhista, ou seja, entre trabalhadores e empresários. Só para se ter uma ideia, em 2018, foram pagos, em ações trabalhistas, R$ 29 bilhões em todo o Brasil.

Quais as críticas do senhor sobre a reforma trabalhista?

A reforma trabalhista se baseava em três pontos principais. O primeiro era justamente reduzir o número de processos, o que realmente aconteceu. A segunda proposta era facilitar a abertura de novos empregos, o que vimos que não surtiu efeito e os dados estatísticos confirmam isso. Todos nós sabemos que a questão do desemprego não se resolve com leis nem com a redução de direitos. A geração de novas oportunidades de emprego se resolve com crescimento econômico. Quando há desenvolvimento da economia, os empresários contratam mais. Agora, não adianta reduzir direito e flexibilizar a legislação trabalhista se as empresas continuam passando por uma situação difícil. Esse objetivo realmente não foi alcançado.

E o terceiro ponto?

O terceiro ponto era gerar segurança jurídica. O que acontece é que o anteprojeto da reforma continha quatro artigos e foi aprovado com 100. Muitos itens dizem exatamente o contrário de algumas jurisprudências já definidas pelo TST, ou seja, temas que estavam pacificados, a lei mudou. Até o momento, também não se verificou esse resultado. A nova lei estabelece requisitos tão restritivos para fixação de súmulas dos tribunais, que o TST até hoje não conseguiu se adequar, por conta da própria lei. É um total paradoxo.

E os pontos positivos?

Na minha opinião, a reforma acertou ao extinguir o imposto sindical, mas ficou incompleta em alguns pontos. O tributo atendia a uma lógica de um sindicato corporativista, atrelado ao Estado. A rigor, pode-se dizer que a reforma deveria ter começado por aí: mudando a estrutura sindical, acabando com a unicidade, que é a obrigatoriedade de se ter apenas um sindicato correspondente a uma categoria profissional numa determinada unidade da federação. A reforma veio, acabou com a contribuição sindical, mas não consagrou a liberdade total para se associar ao sindicato que quiser. Foi um avanço, mas um avanço incompleto.

O que precisa ser revisto na atual legislação?

A meu ver, o que falta é um processo mais desapaixonado. Veja, a reforma trouxe uma regra de tarifação dos danos morais, ou seja, os valores são fixados de acordo com o salário de quem sofre o dano, no limite máximo de até 50 vezes a remuneração daquele trabalhador. O que já começa errado. Trago como exemplo Brumadinho. Comenta-se que uma das famílias está lutando para comprovar que o trabalhador que faleceu no acidente estava em casa cuidando da horta e não no trabalho. Se a indenização foi trabalhista, o valor da reparação estará limitada a 50 vezes o salário dele. Agora, se for comprovado que ele estava em casa, será considerado vítima civil e, por isso, a indenização não tem limites, podendo ser muito maior. Esse é um ponto que precisa ser discutido urgentemente.

Qual é a opinião do senhor sobre essa tarifação?

A vida humana não pode ser tarifada e os danos à pessoa e ao trabalhador não podem estar vinculados ao salário que ele recebia. Precisam ser discutidas situações como essa, além da liberdade sindical. É claro que esse debate precisa ser apoiado em critério técnicos. Na minha opinião, a limitação do acesso ao poder Judiciário também deve ser repensado, pois quem não tem condição de pagar o seu próprio advogado também não pode ser condenado a pagar o representante da empresa. Isso funciona como uma espécie de intimidação, que desestimula essas pessoas a procurarem o poder Judiciário.

A Justiça Trabalhista está preparada para atender às novas demandas do mercado de trabalho, com o uso de novas tecnologias?

É a chamada revolução industrial 4.0, ou seja, situações desafiadoras pela novidade que trazem. Estas discussões estão começando a chegar na Justiça do Trabalho. Por enquanto, temos algumas decisões de juízes em primeiro grau relativas ao trabalho em plataformas, como aplicativos de transporte individual. Ainda é cedo para fazer tendências jurisprudencial. É bom lembrar que essa discussão não ocorre apenas no Brasil. Se não me engano, na Inglaterra, houve uma decisão reconhecendo o vínculo de emprego de um motorista de Uber. A justificativa é de que o fato de utilizar uma plataforma não quer dizer que não há a figura de um empregador, pois alguém está auferindo lucro daquela atividade. Ainda há muito debate para se fazer e questões a serem examinadas. Sem dúvida o Direito do Trabalho precisará ser pensado para alcançar também essa realidade da Indústria 4.0. É muito importante lembrar que a ampliação do Direito do Trabalho não torna inválido o tradicional.

E o que isso quer dizer?

Esse discurso de o trabalhador ter que optar entre direito e emprego é um absurdo. É a mesma coisa que dizer que cidadão precisa optar entre uma vida digna e a proteção dos seus direitos. Somente se pode falar em desenvolvimento sustentável e social se houver Justiça e ela só se faz com direitos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolve desde a década de 90 a doutrina do trabalho decente, que hoje está consagrada nos objetivos do desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidades (ONU). A entidade é clara, no objetivo 8: assegurar o trabalho decente e o pleno emprego para todos, ou seja, aqueles desempenhados em condições dignas, com proteção a vida e a saúde do trabalhador. Não podemos imaginar que o colaborador tenha que abrir mão de direitos fundamentais, sobretudo aqueles garantidos na Constituição, para que possa ter acesso ao emprego.

Quais são os principais motivos que levam o trabalhador à Justiça?

Segundo os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quase 50% das ações trabalhistas contêm pedidos relacionados à verba rescisória, como aviso prévio, salários de dias trabalhados e não pagos, indenização de 40% do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e férias, ou seja, descumprimento de obrigações elementares do contrato. Por isso, é importante que a Justiça do Trabalho seja cada vez mais rápida, pois quando o trabalhador perde o emprego e não recebe o seu aviso prévio, como vai fazer frente às suas despesas? Além desse pedidos, há uma incidência de pedidos de horas extras e indenização por danos morais. É bom lembrar que o cidadão, quando ingressa no local do trabalho, não pode sofrer assédio moral, sexual ou discriminação porque é empregado. Se não pode ter seus direitos violados como cidadão, também não pode como empregado.

O trabalho infantil também é uma triste realidade. No ES, são cerca de 47 mil crianças trabalhando. Qual a melhor forma de combater essa situação?

A primeira medida seria proporcionar uma atuação eficaz na área de assistência social às famílias vulneráveis para prevenir o ingresso dessas crianças ao trabalho infantil. Além disso, seria necessário assegurar o acesso a uma educação de qualidade, para que elas tenham efetiva condição de desenvolverem plenamente o seu potencial.

Quais são as maiores dificuldades no combate ao trabalho infantil?

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