Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

O dia em que Fernanda Montenegro ligou para a Redação

A grande dama do teatro brasileiro completa 90 anos ainda como uma das vozes mais importantes da nossa cultura

Publicado em 16/10/2019 às 15h38

Em outubro de 2008, há quase 11 anos, eu ainda era residente na redação de A Gazeta. Passava um tempo com a equipe do Caderno Dois quando um fato marcante ocorreu. O então já experiente colega Marcelo Pereira, à época responsável pela cobertura de peças de teatro, ficou eufórico e nervoso ao atender uma ligação. Era Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro nacional retornava uma ligação de Marcelo para falar sobre o espetáculo "Encontro com Fernanda", que seria apresentado em Vitória em alguns dias. 

"Ela retornou a ligação e me PEDIU DESCULPAS  por não ter atendido na hora marcada porque o ensaio dela tinha se prolongado", lembra Marcelo. "Fiquei em êxtase por umas duas horas", brinca o jornalista. Ele conta que aquele espetáculo apresentado em 3 de novembro foi algo mágico e fez jus ao nome. "Era um bate-papo com o público, e ela respondia perguntas da plateia. Foi uma noite mágica". 

Marcelo lembra bem de uma fala da atriz, que disse que a gente tinha que ficar alerta a um discurso falso de que cultura é gasto inútil, que deveria se gastar em saúde e educação. "Ela foi profética".

Em outro momento da atriz por aqui, na quarta edição do então Vitória Cine Vídeo (hoje Festival de Cinema de Vitória), em 1999, o marido de Fernanda, o ator e diretor capixaba Fernando Torres (1952–2008), foi homenageado pelo festival. Fernanda veio acompanhar o marido e se recusou a receber qualquer tipo de atenção em torno dela, o homenageado, afinal, era Fernando.

"Eu vou tentar homenageá-la ano que vem. Já mandei o e-mail, só falta ver se vai dar certo. É meu sonho. Tem anos que eu tento", revela a diretora do Festival de Cinema de Vitória, Lúcia Caus.

Arlette Pinheiro da Silva Torres, a Fernanda Montenegro, completa 90 anos hoje (16 de outubro de 2019) como o maior nome não só de teatro brasileiro, mas talvez de todas as artes. Sua lista de personagens marcantes é enorme e já listada internet afora. Ao longo de 70 anos de ofício (como gosta de dizer) Fernanda tem sido magistral nos palcos, nas telinhas e nas telonas - foi a primeira latino-americana indicada ao Oscar de Melhor Atriz, em 2000, por seu papel em "Central do Brasil", quando foi injustamente vencida por Gwyneth Paltrow em "Shakespeare Apaixonado", e pode voltar à premiação no ano que vem com "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", de Karim Aïnouz. Foi também a primeira brasileira a ganhar um Emmy Internacional na categoria Melhor Atriz pelo filme "Doce Mãe".

"Ela virou atriz porque é vida que não é de uma vida só, é uma vida de viver muitas vidas, de tanto que ela gosta de viver", contou Fernanda Torres, também atriz e filha de "Dona Fernanda", em entrevista do "Arquivo N" da GloboNews.

Força da natureza

Aos 90 anos, Fernanda ainda se coloca como uma voz relevante tão forte que consegue irritar os que se armam contra a liberdade e   a cultura.  Mês passado, após posar vestida de bruxa em uma fogueira de livros para "Quatro Cinco Um" - uma alusão ao clássico literário "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury -, ela foi gratuitamente atacada por Roberto Alvim, diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, que usou palavras como "sórdida" e "canalha" para falar da atriz.

Alvim é um diretor de teatro antes ateu que, após vencer um câncer no intestino, se converteu e passou a seguir o ideólogo Olavo de Carvalho e, por consequência, Jair Bolsonaro. Ao conhecer o atual presidente, ele convocou artistas conservadores para "criar uma máquina de guerra cultural".

Fernanda Montenegro é uma lenda, uma defensora das artes, da cultura brasileira. Uma mulher que há 90 anos luta com sua inteligência e seu talento contra o obscurantismo que volta e meia ronda o Brasil. O fato de, sem emitir uma palavra, conseguir tirar do armário pessoas como Roberto Alvim mostra a força de "Dona Fernanda", uma força da natureza a serviço da nossa cultura.

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