É médico, psiquiatra, psicanalista, escritor, jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo. E derradeiro torcedor do América do Rio. Escreve às terças

Brincando com as palavras de Santo Agostinho

Se decorarmos todas as palavras de qualquer língua, não conseguiremos falar essa língua ou compreendê-la. Faltará a ligação afetiva necessária entre elas

Publicado em 03/01/2023 às 00h10

Não sei de onde veio esta minha admiração por Santo Agostinho, especialmente suas “Confissões”, que leio e releio e sempre me aparece o novo. Minha óbvia admiração por Freud não chega às suas sagradas teses, mesmo no quesito técnica, como, por exemplo, descrever o desenvolvimento emocional primitivo.

Creio, também, como já confessei à senhora, que a palavra é o sexto sentido da pessoa, mesmo que ela não queira. Nada é tão mágico e significativo quanto à língua e à fala. Essas, a língua e a linguagem, operam entre o dentro e o fora do Ser.

Se decorarmos todas as palavras de qualquer língua, não conseguiremos falar essa língua ou compreendê-la. Faltará a ligação afetiva necessária entre elas. Todos os alfabetos são iguais na estrutura, mas os arranjos de letras para a formação de palavras são próprios de cada língua. Mas o sexto sentido é o sexto sentido. Independe. E muitas vezes significa premonição.

Teologia
Santo Agostinho em pintura de Philippe de Champaigne (1602–1674). Crédito: Philippe de Champaigne/Wikimedia Commons

Não achei hora mais própria de falar do início da formação da pessoa, do que neste instante, quando começamos um novo ano. Novo, mas não de novidade. Coisas da língua e da mágica da fé. Uma pessoa que tenha crescido isolada em uma floresta adquire uma língua pessoal. Certos animais, domésticos ou não, também podem adquirir um sistema de comunicação com sons.

Então.

É por isso que reli – intelectual não lê, relê – uma descrição do que Agostinho concebeu de seus primeiros tempos . Diz ele que, passada a primeira infância, não chegou à sua época de menino. “Ou melhor dizendo, não foi a presente época que chegou a mim, sucedendo a minha primeira infância. Minha infância nunca foi embora, pois para onde iria? Mas agora ela não existia mais”.

Ele confessa que não era um bebê que sabia falar. E disso lembra muito bem. “Mais tarde, brincando com as palavras, descobri como aprendi a falar. Os mais velhos não me ensinaram a falar me expondo as palavras ditas em uma certa ordem autoritária, como fazem com as letras mais tarde. Aprendi a falar através da mente que tu, meu Deus, me deste (alguns sábios chamam isso de loucura). Aprendi eu mesmo com grunhidos, sons variados e diversos movimentos do corpo, e assim consegui expressar os sentimentos de meu próprio coração para que as minhas intenções fossem realizadas, mas não consegui falar o que queria, mesmo que fosse para ter o necessário. Ou falar por sinais”.

Não conseguiu. Estaria se referindo à escrita?

Agostinho escreve sobre a aversão que as crianças têm pelo estudo e o amor que nutrem pelo brincar.

Então.

Reclama de Deus: “Só queríamos brincar, nem memória, nem capacidade. E só por isso éramos castigados severamente, mesmo se os mestres que nos batiam tivessem o mesmo comportamento que nós. Mas a ociosidade dos mais velhos é chamada de trabalho, e quando as crianças fazem o mesmo tais pessoas adultas acham que devem castigá-las. E ninguém tem pena das crianças, nem dos adultos, nem dos dois juntos”.

“Mas talvez um juiz plenamente imparcial possa dizer que foi justo eu ter apanhado por jogar bola, sendo eu ainda um menino, porque ao praticar aquele esporte, estaria atrasando meu aprendizado e, assim, quando eu me tornasse adulto, me tornaria uma pessoa inconveniente: seria meu mestre que agora me surra, de algum outro modo?”.

Muito mais tarde, o psicanalista inglês Donald Winnicott e sua sóbria inteligência no texto “O brincar e a realidade” faz do brincar um instrumento significante que representa o desejo infantil. Então, o brincar é um movimento criativo que serve a qualquer idade. Picasso estava brincando quando criou seus brinquedos maravilhosos que vinham do seu coração. Ou seja, poucos antecederam Santo Agostinho.

Dorian Gray, meu cão vira-lata, acha que Pelé brincou do nascimento ao fim...

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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