É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Domesticados

Aos pés do altar, de casaca, suando frio enquanto assiste à noiva se aproximar lentamente – o homem é solene. (Jurar amor eterno diante de uma multidão faz todo sentido)

Publicado em 01/03/2021 às 13h39
Casal de namorados
Na mesa do restaurante, lambido pela luz da vela, preocupado com os preços do cardápio e indeciso sobre a ordem dos talheres – o jovem é namorado. Crédito: Freepik

"Sou onde não penso. Penso onde não sou." Lacan

Dentro da hora preguiçosa, na banheira de água morna, leitosa de sabonete derretido – o bebê é um mamífero. (Brinquedos de cores quase intoleráveis fazem todo sentido). Ele brinca, experimentando a alegria de estar vivo.

Debaixo do escorregador enferrujado, na areia encardida do parquinho, puxando o cabelo vermelho da vizinha – o menino é instintivo. (Se defender das boladas arremessadas pela garota malvada faz todo sentido). Ele puxa com força, impondo limite.

Pulando o muro da escola, enquanto o professor de basquete corre atrás da bola – o moleque é atrevido. (Aproveitar a deixa para fugir do sistema uniformizado faz todo sentido). Ele corre rindo, experimentado, no pé da barriga, um frio.

No escuro úmido da escada de incêndio do edifício, abrindo botões e apalpando cada centímetro de pele quanto possível – o garoto é lascivo. (Driblar com talento as mãos defensivas da menina, que lhe mordisca os lábios com malícia, faz todo sentido). Ele tenta, demonstrando empenho.

No asfalto quente da estrada rumo à Bahia, acelerando o carro ao som de "Rush", no máximo – o rapaz é imprudente. (Aproveitar o ângulo de cada curva, para fazer da viagem uma aventura, faz todo sentido). Ele pisa fundo, curtindo a embriaguez da adrenalina.

De abadá rasgado, no meio do bloco de carnaval, dançando com uma garota em cada braço – o cara é um gaiato. (Enfiar o pé na jaca durante os 5 dias de feriado faz todo sentido). Ele aproveita, pula e beija, bebendo a euforia.

Na mesa gelada do escritório de engenharia, entre calculadoras e réguas – o recém-formado é estagiário. (Refazer débeis relatórios e oferecer, vez por outra, um cafezinho ao chefe faz todo sentido). Ele coça a cabeça e olha o relógio, ficando íntimo do tédio.

Na mesa do restaurante, lambido pela luz da vela, preocupado com os preços do cardápio e indeciso sobre a ordem dos talheres – o jovem é namorado. (Fingir, que entende de vinhos e que os preços dos pratos são justíssimos, faz todo sentido). Ele sorri amarelado e acena discretamente para o garçon, se esforçando para não parecer desajeitado.

Na sala de estar da casa dos sogros, ao som de Tony Bennett, recebendo os amigos em sua festa de noivado – o rapaz é sério. (Oferecer ajuda à sogra e conversar com o cunhado sobre os futuro da bolsa na Europa faz todo sentido). Ele agradece a presença dos que chegam e ajeita orgulhoso a gravata, antecipando o gosto de ser dono de uma casa.

Aos pés do altar, de casaca, suando frio enquanto assiste à noiva se aproximar lentamente – o homem é solene. (Jurar amor eterno diante de uma multidão faz todo sentido). Ele limpa na calça o suor das mãos e levanta o véu da moça, enxergando o resto da vida nos olhos da futura esposa.

Na fila do supermercado, numa tarde de sábado, ouvindo a mulher reclamar do preço do sabão em pó – o marido é incomodado. (Ficar calado, mesmo sonhando com uma mesa de boteco e um chope gelado, faz todo sentido). Ele resmunga baixinho e sorri com ironia, experimentando a angustura da rotina.

Na repartição, aguardando o alvará de liberação da obra e engolindo seco o sarcasmo recheado de má vontade do funcionário – o engenheiro é conformado. (Ter paciência de Jó, e goela de caçapa de sapo para conseguir um documento necessário, faz todo sentido). Ele aguarda disfarçando como pode a irritação, exercitando o abafamento da indignação.

Novamente, na estrada para a Bahia, agora ao som de Gal Costa, com a esposa no carona, intermitentemente, reclamando da velocidade – o homem é domesticado.

(Sem passar dos 90 km por hora, ele dirige rumo ao feriado de carnaval que, mais uma vez, será com os sogros, num Resort monumental. Com as mãos no volante, ele pensa...

Sabe que vai ouvir sobre política durante os 5 dias; que vai beber moderadamente; que vai evitar os passeios de barco porque a mulher e a sogra enjoam fácil; que vai passar filtro solar a cada duas horas; que vai jantar com toda a família no horário combinado; que vai entender a enxaqueca da esposa – que não pode com sol forte, fritura, nem doce; e vai adormecer todos os dias tendo o carnaval na TV como companhia).

Ele pensa... Pensa que no que era, pensa no futuro, pensa na vida... E desta vez, não tendo encontrado sentido, ele, de repente, para de pensar e passa a quinta – procurando uma saída.

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