Recentemente, liderei uma publicação na respeitada revista The Lancet, na qual destacamos que o corte abrupto e massivo no financiamento — especialmente proveniente dos EUA — está colocando em risco todo o ecossistema de controle da tuberculose (TB).
Esse aporte representa quase um quarto dos investimentos internacionais na área. A interrupção repentina de atividades de diagnóstico, tratamento, vigilância e pesquisa já é perceptível em diversos países de alta carga, ameaçando revertê-los ao estado de calamidade sanitária e retrocedendo nas iniciativas de controle em mais de 20 anos. Para uma doença infecciosa transmitida pelo ar, como a tuberculose, isso é bastante preocupante para o mundo, pelos pontos que passo a expor.
Durante a pandemia, o enfraquecimento dos programas de tuberculose ocasionou cerca de 700 mil mortes em excesso entre 2020 e 2023. O diagnóstico tardio, a interrupção de tratamentos e o foco exclusivo na Covid-19 deixaram a tuberculose avançar silenciosamente. A experiência mostrou que tais interrupções têm efeitos imediatos e catastróficos no controle da doença.
Alguns relatórios da Organização Mundial de Saúde (OMS) e modelagens epidemiológicas preveem cenários alarmantes caso os cortes persistam. Há previsões que estimam que, entre 2025 e 2027, pode haver uma queda acentuada na detecção de casos e no acesso ao tratamento.
Essas estimativas sugerem que, apenas nesse período, poderão ocorrer entre 100 mil e 2,2 milhões de mortes adicionais por tuberculose, dependendo da permanência desses cortes. Além disso, a retirada de financiamento pode causar um “apagão” em 18 países de alta carga, com paralisia completa — por exemplo — no Camboja e no Paquistão.
Essa retirada abrupta do financiamento age em alguns pontos específicos, comprometendo a resposta dos países, como, por exemplo: demissões em massa de profissionais de saúde e suspensão de suporte técnico local; ruptura na cadeia de distribuição de insumos e medicamentos; colapso na infraestrutura laboratorial — especialmente na testagem molecular, que requer equipamentos e pessoal mais qualificado; e enfraquecimento da vigilância epidemiológica, afetando também o monitoramento de resistência aos medicamentos, dentre outros.
A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) era a terceira maior financiadora de pesquisas em tuberculose. Com a retirada dos financiamentos por parte dessa agência, os ensaios clínicos e estudos epidemiológicos foram suspensos, comprometendo o avanço de novas vacinas, tratamentos e tecnologias, além do apoio direto aos países.
Portanto, esses cortes têm impacto não só do ponto de vista técnico, mas também ético. A falta de planos de transição adequados fere princípios de equidade e compromisso com a saúde pública, além de minar a confiança na cooperação global. Isso nos alerta para uma crise iminente. A perda do financiamento significa mais mortes evitáveis, agravamento da resistência bacteriana e enfraquecimento de programas que demorarão décadas para serem reconstruídos.
Esse episódio nos mostra que um governo negacionista é capaz de atrasar avanços que demoraram quase um século para se consolidarem, em apenas poucos meses. A falta de entendimento de que não há lugar seguro enquanto todos não estiverem protegidos das ameaças biológicas demonstra a pouca compreensão do nosso destino coletivo e interdependência.
No caso de doenças de transmissão aérea, como a tuberculose, a falta de acesso adequado aos medicamentos pode levar ao surgimento de resistência bacteriana e nos coloca todos em risco. Cepas resistentes a múltiplos tratamentos podem elevar a insegurança sanitária e reiniciar ciclos de transmissão em comunidades onde a doença já estava controlada, como nos próprios EUA e na Europa.
Para evitar o retrocesso, é indispensável que algumas ações possam ser efetivadas, como: uma reposição urgente de recursos, tanto por doadores multilaterais quanto bilaterais, já que alguns países não conseguem, com seu financiamento doméstico, suprir, sem uma transição programada, as ações já em curso para compra de medicamentos e testes diagnósticos.
Também é necessário garantir o fomento imediato à pesquisa, assegurando continuidade de estudos essenciais. Pessoas com tuberculose que estavam com tratamento garantido por estarem participando de pesquisas tiveram, de uma hora para outra, seus tratamentos interrompidos.

Além disso, é importante pontuar que o fortalecimento da atenção primária e ações e trabalhos comunitários — base da resposta contra a doença — precisam ser fortalecidos, reconhecendo que a tuberculose é uma doença ligada à pobreza e que seu controle exige também justiça social.
A ciência só se completa quando alinha evidência com dignidade humana. É urgente que governos, doadores e sociedade civil reconheçam os alertas internacionais e tomem medidas imediatas para reverter os cortes, reafirmando nosso compromisso global com a Agenda 2030 e a meta de eliminação da tuberculose.
Se falharmos agora, o preço será dolorosamente mensurado em vidas perdidas — e o retrocesso em saúde será a herança que deixaremos para as futuras gerações.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.