Nos últimos dias, viralizaram nas redes sociais áudios que envolviam o pastor Silas Malafaia em diálogos bastante comprometedores com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Em manifestações discursivas acaloradas, o pastor profere, além de declarações comprometedoras do ponto de vista jurídico, palavras torpes e indecorosas nada adequadas à sua condição de pastor evangélico.
Na mesma semana, episódios envolvendo uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho, em manifestações discursivas também inadequadas, dirigidas a seus pares, chegaram às redes sociais, expondo mensagens carregadas de ofensas, acusações e impropérios nada compatíveis com sua condição funcional e com a civilidade obrigatória a todos nós e, em especial, àqueles que alcançaram patamares de responsabilidade social e de poder institucional mais expressivos.
Esses diálogos me levaram a refletir sobre a linguagem e seus usos na era digital.
A linguagem nos representa, revelando aquilo que efetivamente somos.
O grande filósofo alemão Martin Heidegger, em sua obra “Cartas sobre o humanismo”, afirma que a “linguagem é a morada do ser” e que, nesse sentido, é por meio dela que eu me revelo ao mundo, deixando à mostra quem realmente sou. Eu habito na linguagem e ela me habita.
O pensamento heideggeriano, complexa construção filosófica de um dos pensadores mais sofisticados que a humanidade já conheceu, falecido em 1976, pode ser representado de forma simplificada em um pequeno e singelo adágio popular muito conhecido no Brasil interiorano, repetido por pais em processo educativo de seus filhos, qual seja, “a boca fala do que o coração está cheio”.
Corro o risco de, na tentativa de tornar palatável e compreensível uma ideia tão rebuscada como a de Heidegger acerca da linguagem enquanto morada do ser, promover, com esse adágio, um reducionismo que dificulte ainda mais a mensagem que gostaria de transmitir por meio deste texto.
O certo é que a forma como nos manifestamos por meio da linguagem evidencia o ser que habita em nós, revelando aos nossos interlocutores aquilo que verdadeiramente somos, pensamos, acreditamos, nos identificamos, desejamos, enfim, quais são nossos valores e nossas crenças. É na linguagem que o homem se constitui, se percebe como um ser que existe em um mundo que precisa ser compreendido e com o qual precisa se relacionar.
Nos últimos dias temos sido impactados, mas não surpreendidos, por personalidades públicas que deveriam, seja pela liturgia do cargo que ocupam, seja pela natureza ética e/ou jurídica das funções que exercem, cuidarem dos discursos que enunciam, de forma a não comprometer sua própria imagem ou a imagem das instituições que, de alguma forma, representam.
Na porosidade conceitual do que seja espaço público ou privado, não é possível falar em liberdade discursiva irrestrita. A liberdade de expressão não é um direito absoluto, até porque direitos absolutos não existem. Podemos afirmar que, do ponto de vista legal, nem mesmo a vida é um direito absoluto, já que pode ser flexibilizado em casos de guerra, por exemplo.
Estamos todos, independentemente de quem somos ou do cargo que ocupamos, limitados às regras da urbanidade/civilidade, do respeito mútuo, da cortesia natural necessária a promoção da harmonia social.
A civilidade inclui formalidades que, ainda que não estejam necessariamente escritas, devem ser observadas. Agressões verbais, xingamentos, ofensas de qualquer natureza, violências explicitas ou simbólicas, palavras que produzam humilhação, vergonha e sofrimento, não são aceitáveis e devem ser repelidas com firmeza.
A falta de civilidade no trato público pode violar direitos fundamentais, atingindo a dignidade e a honra das pessoas e podendo ocasionar, inclusive, danos morais a serem demandados na Justiça.
Não são apenas os códigos éticos que devem ser objeto de nossa atenção, mas, também, a observância às práticas discursivas que atingem os direitos de personalidade, em especial a honra e a imagem de alguém. O código penal brasileiro é claro ao designar os crimes contra a honra, aqueles que produzem danos e impacto social e individual.
Nesse sentido, calúnia, difamação e injúria, por exemplo, são consideradas crimes no ordenamento jurídico brasileiro. Enquanto a calúnia consiste em imputar a alguém um crime, com intenção de ofender a honra, na difamação não há necessidade de que a acusação se configure como crime. O simples ataque à reputação com intenção de difamar ou depreciar alguém já se constitui crime. A liberdade de expressão, direito constitucionalmente garantido, não autoriza a ofensa nem a propagação de informações falsas.
Para além do aspecto legal, ao qual estamos todos submetidos, algumas ocupações estão conformadas a partir do imaginário social e da natureza da atividade desenvolvida.
Não pode um professor, por exemplo, utilizar palavras ou manifestações consideradas inapropriadas ao seu mister. Sua condição de educador o constrange a um permanente alerta no sentido de que seus alunos o vejam como um paradigma, um exemplo, um modelo positivo a ser seguido.
Não pode um líder religioso, um pastor, manifestar-se com violência, com palavreado vulgar, xingamentos, condições incompatíveis à vocação ou chamado que diz atender. A diretriz bíblica é “não saia de sua boca, nenhuma palavra torpe” já que aquilo que você fala precisa refletir aquilo que você crê e, nesse sentido, suas palavras e atitudes precisam refletir o cristianismo que você prega.
Da mesma forma, espera-se de um juiz uma linguagem que reflita seu compromisso com a justiça, com a ética, com a dignidade da pessoa humana, com o decoro indispensável à grandeza do cargo que ocupa. Um juiz não é livre para julgar a partir de suas opções políticas, seu sistema de crenças religiosas, seus pressupostos ideológicos, suas opções político partidárias ou simplesmente a partir de seus interesses de poder.
Há uma expectativa social, uma exigência e nobreza ética na magistratura às quais todo o juiz e juíza estão submetidos. O exercício da magistratura implica, em sobriedade discursiva, baseada na tolerância, no respeito à pluralidade, na capacidade de exercer uma mediação justa e equilibrada, no controle dos impulsos, na compreensão da importância da busca pela pacificação social, que deve começar, inclusive, em seus núcleos profissionais mais restritos.
Ameaçar ou constranger em razão de cargos ocupados ou a serem ocupados é incompatível com o alcance de uma justiça justa e eticamente relevante, condições naturalmente esperadas daqueles que decidem acerca de nossos direitos e dos bens da vida que lhes são dados a proteger.
A incapacidade de controle discursivo, de modo a adequá-lo à natureza do cargo, é um sintoma evidente de que há uma incompatibilidade para o exercício efetivo de seu compromisso institucional, seja ele profissional, como no caso de professores e juízes, seja ele vocacional, como no caso dos pastores.
De qualquer forma, necessário destacar que nem todos aqueles que maculam suas próprias imagens com manifestações indevidas, intolerantes, desrespeitosas, violentas, desonrosas dos cargos que ocupam, com linguajar inconciliável com a vida pública, evidenciam um ethos institucional da mesma natureza.
As profissões e as instituições são maiores que seus exercentes e precisam estar atentas a preservarem-se de desvios éticos, cívicos e jurídicos de seus membros.
A linguagem é, sempre, a morada do ser, lugar de habitação daquilo que somos, de nossas crenças e de nossos valores, e, nesse sentido, representante de mim mesmo e não da instituição a qual eu pertenço.
É papel das instituições cuidarem de sua imagem pública, reafirmando seu sistema de crenças e compromissos éticos e jurídicos com a verdade, com a justiça, com a Democracia e com o estágio civilizatório de busca pela paz e de respeito à dignidade da pessoa humana em todas as suas dimensões e tempo.
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