É escritora de ficção e professora de cinema. Escreve às terças-feiras sobre livros, filmes, atualidades variadas e fatos contemporâneos

Velhas casas do Centro de Vitória guardam pequenos segredos

Às vezes, as janelas delas se abrem para as paredes de um edifício enorme que se levantou no lugar de outra casa vizinha ou se abrem para o nada, pois nem mesmo os jardins e os quintais de outrora restaram

Publicado em 15/08/2023 às 00h20
História Abandonada - Ensaio fotográfico com foco nos detalhes da arquitetura de época, ação do tempo e o descaso com alguns prédios no Centro Histórico de Vitória
Imóvel no Centro de Vitória. Crédito: Fernando Madeira

Devagar, o tempo foi mudando a topografia urbana do Centro. Casas antigas foram derrubadas ou abandonadas pelos donos que se foram para bairros mais “moderninhos” ou para aquele lugar aonde iremos todos nós, os viventes, algum dia. Mas as velhas casas que permanecem guardam pequenos segredos.

Às vezes, as janelas delas se abrem para as paredes de um edifício enorme que se levantou no lugar de outra casa vizinha ou se abrem para o nada, pois nem mesmo os jardins e os quintais de outrora restaram: viraram garagens e puxadinhos para alugar. O resultado é um aglomerado de telhados que se colam e se apertam, quando vistos do alto.

Foi sobre essa paisagem de telhas e placas que um cão encontrou seu refúgio, seu “locus amoenus”, embora lá não cheguem o perfume das flores e as revoadas de pássaros (tal como falavam os poetas renascentistas sobre esses “lugares de amenidades”). Ao seu focinho sobem apenas os cheiros de um restaurante de hotel ali perto e, em torno dele, só os pombos dão voos rasantes.

Antes, o cão vivia em uma varandinha estreita, erguida no que havia sido o quintal de uma residência. Sem espaço, ele andava de lá para cá. E latia incessantemente, dia e noite, talvez na esperança de que uma alma caridosa o viesse libertar daquela condição, restritiva à natureza livre dos cães. Era difícil não se comover com seu desespero.

Um belo dia, alguém fez uma ponte com uma tábua de madeira ligando a varandinha a um buraco existente no telhado dos fundos da casa da frente. O prisioneiro canino começou a circular por ali, a alcançar os espaços inclinados ao redor e a andar sobre eles.

No começo, ele manifestava receio de caminhar sobre as telhas inclinadas, afinal os cães não possuem a destreza dos gatos que ali passeiam com toda elegância. Com o passar do tempo, foi criando coragem, avançando, explorando o novo território ampliado por cima das construções ao redor.

Agora, toda manhã, ele checa o buraco que lhe dá passagem, verifica se não foi fechado. De minha janela, eu o vejo circular pelas alturas, sem deslizar, sem cair. Vai e vem, late para outros cães que passam lá embaixo, levanta a pata traseira, faz xixi, marca seu território. E até corre pelas cumieiras com a maior displicência como fazem os gatos que o observam com curiosidade e prudência, à distância.

Muitas vezes eu o vejo chegar às beiradas escorregadias das telhas, olhar para baixo onde passam as pessoas, os gatos e outros cães. Mas a altura não o encoraja a pular. Continua a ser um cão solitário. Talvez sua prisão apenas tenha sido trocada por outra mais ampla. Não me cabe julgar.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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