Evito escrever crônica e artigo no mesmo dia, até na mesma semana, quando isso é possível, porque gosto de abordar temas totalmente diferentes, mas desta vez um artigo que estou escrevendo não me deixou opção, ele quis ser crônica. Aceitei.
Lá, no artigo, vou elencar questões muito específicas e aqui, na crônica, quero espraiar a inspiração. Amo o verbo espraiar. Sinto seu derretimento sem borda sob os meus pés. Esse alargamento do pensar conta com a cumplicidade do corpo.
Escrevo para sentir a palavra viva em mim. Gosto de ler o que produzo como uma terapia. A palavra presa, para mim, é adoecedora. Escrever crônica é deixar a palavra solta. Ela vem meio descabelada, quase sempre, mas é um encontro memorável. Eu e o meu dito, que se eu não dissesse poderia ser maldito, fazemos nossa história.
Meu breve artigo é sobre um filme de Almodóvar, “O quarto ao lado”. E isso é metade do que eu falarei sobre ele aqui. A metade restante é sobre a frase que saltou de lá para cá: "eu vivi para ver isso". Nada mais contarei. Sei que leitores poderão ficar frustrados, mas penso isso como um estímulo à curiosidade e ao cinema.
Mais que falar do filme, quero exercitar o olhar para o que em mim traduz o prazer de viver. Mesmo nas fases de luto, e elas existem e precisam ser respeitadas e elaboradas, eu procuro não me distrair diante do que realmente me importa na vida. É bom saber o que te faz viver para ver.
Eu vivo para me ver dançando na cozinha o piseiro de João Gomes. Que coisa improvável e deliciosa. Isso me resume muito. Um instante de devaneio e contentamento verdadeiro apaga todas as dores do mundo. Não conhece João Gomes? É a vibração da alegria em forma de música, mesmo quando chora de coração partido. Terapêutico.

Quando você toma o tempo para si e faz do instante algo muito íntimo e prazeroso, você cura dores ancestrais. Regenerar-se é um jeito de olhar para o mundo. Resgatar a intimidade consigo só tem benefícios.
A poesia mora nas epifanias das dores e dos amores. Em algum momento, entendemos que a vida está no entremeio. É feita do que nos escapa. É a inutilidade de um arrasta-pé que nos salva. Isso não se compra e não se vende. É ou não é seu por direito de ponto de vista.
É no tempo dos detalhes que mora o essencial. Como disse Manoel de Barros, é preciso transver o mundo. Em tempos de ostentação insana, avalie sentar na grama e observar as formigas.
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