Publicado em 7 de abril de 2023 às 08:27
- Atualizado há 3 anos
Em um curto espaço de tempo em que dois ataques a unidades de ensino horrorizaram o país, inúmeras postagens cultuando os massacres e seus autores foram identificadas por usuários das redes sociais e reportadas pela imprensa. >
A facilidade de encontrar esse conteúdo extremista em publicações abertas, o seu grande volume nas maiores plataformas e o longo tempo em que muitas delas ficam no ar, sem serem bloqueadas, levou muitos usuários a questionarem se alguém está investigando todo esse conteúdo. O que as autoridades estão fazendo para combater esse incentivo a ataques e essa radicalização? >
Em um vídeo postado no Twitter em português na quarta-feira (05/04) com uma montagem glorificando cenas de ataques a escolas ao som de rock — que parece retratar os agressores como personagens de um filme de ação — um usuário marcou o perfil da Polícia Federal, outra pessoa avisou a página do ministro da Justiça, Flávio Dino, e outro chegou a marcar até o FBI, a agência de investigação dos Estados Unidos, que não atua no Brasil. >
Em outro post parecido, no qual uma pessoa diz que “espera que coisas assim aconteçam com mais frequência”, uma usuária marcou um delegado de São Paulo, outra marca o perfil do BOPE, a tropa de choque da PM do Rio de Janeiro. >
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As respostas às postagens extremistas mostram que há uma certa confusão sobre quem deveria investigar esse conteúdo e sobre o que está sendo feito pelas forças de segurança. Em que momento a polícia deveria intervir? O que poderia ser feito? >
A Constituição brasileira determina a quem cabe investigar quais crimes. A Polícia Civil investiga os ataques realizados por agressores nas escolas, mas sua atuação é determinada pelo território onde um crime acontece, explica a criminalista Maira Zapater, professora de direito penal e direito processual penal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Ou seja, um crime cometido em São Paulo é investigado por departamentos policiais de São Paulo.>
A incitação ao crime que acontece na internet, no entanto, não tem um território claro - a localidade do usuário pode ser descoberta por uma investigação já em andamento, mas que Estado vai iniciar a investigação? O problema é que essa conduta nas redes sociais também não é automaticamente responsabilidade da Polícia Federal, segundo os especialistas.>
A PF tem um departamento criado em janeiro de 2023 para coordenar as suas unidades que combatem crimes de ódio (como o crime de racismo), mas sua atuação é restrita: investiga somente os crimes que serão julgados pela Justiça Federal — por exemplo, quando há prejuízo a algum bem, serviço ou interesse da União e crimes previstos em tratados internacionais em que há aspectos transnacionais, explica a criminalista Maira Zapater. >
A Polícia Federal afirma que o simples fato de um usuário propagar discursos de ódio na internet, não traz, por si só, a atribuição da Polícia Federal. “É necessário demonstrar a internacionalidade da conduta ou de seus resultados, assim como a intenção de atingir coletividade (e não indivíduos específicos)”, explica a PF à BBC.>
A PF também investiga crimes que poderiam se encaixar na Lei de Terrorismo, mas a maioria das ameaças de ataques às escolas, diz a instituição, não ficam sob sua alçada. >
“Seja porque tratam-se de atentados contra a vida de particulares sem dano ou interesse direto da União, seja porque o ato violento é cometido por menor de idade, o que cabe ao respectivo Juízo especial, com consequente atribuição da Polícia Civil (para investigar)”, explica a instituição. >
A Polícia Federal afirma que, embora não tenha uma unidade específica para combater ameaças de ataques à escolas na internet, porque em geral isso foge da sua atribuição, ela faz o encaminhamento necessário a cada caso quando investigações, monitoramentos ou mesmo queixas de pessoas sobre ameaças chegam à instituição. >
A dificuldade é que, além de ter uma atuação com limitação territorial, a Polícia Civil precisa de indícios de que uma conduta na internet se encaixa em uma descrição de um crime para investigá-la - e muitas vezes ela não se encaixa em nenhum, explica a professora Maíra Zapater. >
“Por exemplo, um jovem que diz que 'ter arma é muito bom porque você pode matar quem você quiser' está falando algo que pode se encaixar em discurso de ódio, mas é uma conduta que por si só não configura um crime”, explica. “O que não significa que não seja reprovável e que não haja outras formas, não penais, de se combater.”>
Da mesma forma, alguém que diz que um atirador “estava certo” ou que é “alguém com coragem” não é uma ameaça de fato e pode não se encaixar no delito de incitação ao crime, segundo os especialistas.>
Ou seja, a celebração de agressores e a investigação do incentivo aos ataques em escolas nas plataformas mais abertas de redes sociais de certa forma cai em uma área cinzenta, um vazio legislativo, sobre quem tem a competência para investigar.>
O Supremo Tribunal Federal (STF) já afirmou que existe uma “omissão legislativa” em alguns temas ligados ao combate de crimes motivados por discursos de ódio e intolerância e cobrou que o Congresso Nacional faça leis mais específicas. >
Além disso, a evolução das redes sociais na internet é fenômeno relativamente recente que a legislação muitas vezes falha em acompanhar no mesmo ritmo, explica a advogada Ana Paula Siqueira, que tem mais de 10 anos de atuação no combate ao cyberbullying. E isso não apenas no campo penal, mas também quanto ao direito civil - a Lei de Proteção de Dados, que regula o tratamento de dados pessoais, por exemplo, foi criada em 2018. >
Todas essas dificuldades, no entanto, não significam que não haja nada que as autoridades policiais possam fazer enquanto não houver novas leis sobre o assunto. >
Se houver qualquer indício de localidade dos usuários radicalizados ou de lugares onde eles afirmam que vão agir, a Polícia Civil estadual daquele estado entra no caso. >
“A Polícia Civil vai iniciar uma investigação se identificar uma ameaça na internet a uma escola da Bahia”, explica a Secretaria de Segurança Pública do estado. >
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que a Polícia Civil registrou 279 casos de ameaças e casos de exaltação de ataques a escolas na internet, envolvendo o estado, em apenas uma semana. >
“O trabalho do setor de inteligência da Polícia Civil frustrou, entre os dias 11 e 12 de março, dezenas de possíveis atos violentos em escolas. Foram cumpridos sete mandados de busca e apreensão nos municípios de São José dos Campos, Caçapava e Tupã, sendo apreendidos três adolescentes com celulares, facas, máscaras, chips de telefonia, bandanas e cadernos de anotações”, diz o órgão.>
A secretaria diz que os detalhes das operações para apuração de crimes virtuais “são preservados para garantir autonomia aos trabalhos policiais”, mas que monitora as ameaças e casos de exaltação de ataques a escolas na internet e especialmente em redes sociais. “(A Polícia Civil) age também em resposta a denúncias apresentadas por usuários das redes”, diz a pasta. >
Nesta quinta (06/04), o governo federal anunciou a criação de uma força tarefa do Ministério da Justiça com as delegacias estaduais contra crimes cibernéticos para prevenir e reprimir ataques às escolas. >
Também foi montado pelo Ministério da Justiça um grupo emergencial de monitoramento da deep web, uma parte da internet de mais difícil acesso e com maior anonimidade para os usuários - que não é ilegal, mas muitas vezes é usada para o planejamento de crimes. >
Investigação da própria polícia de São Paulo mostrou que o agressor que matou a professora em São Paulo participava de comunidades radicais na internet e chegou a dizer que cometeria crimes — algo que passou despercebido pelos radares das forças de segurança. >
O procurador aposentado Ricardo Prado, professor de direito e presidente do Movimento do Ministério Democrático, explica que o volume de postagens extremistas é uma grande dificuldade para a investigação. >
“Não é possível rastrear tudo, porque a quantidade desse tipo de conteúdo é gigantesca, inclusive nas plataformas mais conhecidas”, afirma ele, que explica que o Ministério Público tem uma série de grupos de trabalho sobre a questão.>
Embora a atribuição de investigar crimes seja primariamente das polícias, o Ministério Público também tem competência para fazer investigação em diversos casos. >
Prado diz que essa radicalização é “algo muito difícil de combater sem a colaboração das plataformas, que muitas vezes desrespeitam ordens judiciais (de entregar dados sobre usuários ou derrubar contas)". >
“Se a Justiça bloqueia essas plataformas (por terem desrespeitado as ordens judiciais) o público brasileiro reage, fica contra o judiciário”, afirma ele, que defende defende a aprovação de projetos de lei que visam uma maior regulação e responsabilização das plataformas de redes sociais, como a Lei Brasileira de Liberdade na Internet, Responsabilidade e Transparência Digital, que tramita no Congresso. >
As principais plataformas afirmam que trabalham continuamente para derrubar conteúdos de violência e ódio e que têm canais para denúncias feitas por usuários. O Twitter, no entanto, não respondeu ao contato da reportagem. A plataforma mudou sua política de moderação após aquisição por Elon Musk e também parou de responder a questionamentos de jornalistas. >
O Ministério da Justiça anunciou que uma reunião da nova força tarefa federal e interestadual com representantes das plataformas de redes sociais está marcada para segunda (10/04). O encontro deve alinhar um protocolo de atuação conjunta, diz a pasta. >
Pesquisadoras e juristas alertam que, embora essencial, a atuação das forças policiais é a “última linha” de combate à radicalização - um problema que tem muitas causas que precisam ser combatidas em diversos setores da sociedade. >
“Ter o artefato da segurança pública garantindo que haverá um cerceamento de conteúdos violentos e opressores e buscando responsabilização pelos danos é um caminho, mas não é o único”, diz Danila Di Pietro, pesquisadora da Unicamp e parte do grupo, liderado pela professora Telma Vinha, que mapeou ataques a escolas nas últimas décadas. >
“Se a gente não trabalhar na promoção de uma convivência ética e democrática, com trabalho nas escolas, por exemplo, a gente só vai atuar depois do dano causado. Quando um adolescente propaga um conteúdo violento, o dano já está sendo causado - pode ser pior - mas o dano já é cometido com o discurso de ódio, já é uma violência”, afirma. >
“Por isso que a gente precisa, na escola, articular um debate sobre radicalização, sobre politização, racismo, misoginia, sobre como a gente convive com a diferença, com aquilo que não gosto. Tudo isso precisa ser oferecido antes do discurso de ódio, antes do ato violento”, diz ela. >
A criminalista Maíra Zapater, da Unifesp, afirma que a criminalização de mais condutas online que hoje não se encaixam em nenhum crime descrito na legislação pode não ser o caminho mais efetivo de combate. Mesmo quando um adolescente já foi introduzido à radicalização e acessa esse tipo de conteúdo, dependendo do caso concreto, existem formas de se combater que não necessariamente passam pela investigação policial e pelo direito penal. >
As plataformas de redes sociais, por exemplo, podem por iniciativa própria fazer um rastreamento mais amplo e mais rápido desse conteúdo e dos perfis extremistas e derrubá-los, impedindo sua multiplicação, antes de uma ação da polícia ou de um mandado judicial. >
Ricardo Prado, do MPD, também aponta para o caminho da cobrança, regulação e responsabilização das plataformas. >
“Não estamos falando de cerceamento de liberdade de expressão, mas de exageros, radicalismos, de espaços onde se propaga o ódio e onde se ensinam a fazer bombas”, pontua Di Pietro. >
O governo federal anunciou nesta semana a criação de um grupo de trabalho interministerial de combate e prevenção à violência nas escolas com membros das pastas da Educação, da Justiça, dos Direitos Humanos e da Secretaria-Geral da Presidência da República.>
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