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É doutor em Direito e procurador municipal

Venda de sentenças: a "intenção" no agir do poder público

Não se pode confundir o ato praticado (se correto estiver) com a intenção (talvez ilícita) do agente ao praticá-lo. E a intenção de um agente não necessariamente contamina a intenção dos demais

  • Luiz Henrique Antunes Alochio É doutor em Direito e procurador municipal
Publicado em 25/07/2021 às 10h00
Fachada do TJES na praia do Suá
Fachada do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) na Enseada do Suá, em Vitória. Crédito: Carlos Alberto Silva

Recentes acusações de corrupção no Poder Judiciário acabaram trazendo à recordação os estudos básicos de Direito Público. Notícias dão conta que magistrados são acusados de “venda de sentenças”. Nesses casos, muitos acusados acabam alegando que “o tribunal confirmou a sentença”, como se isso tornasse a situação legítima. Não é bem assim. E, pelo mesmo motivo, se o tribunal confirmar a sentença “vendida” por um juiz de primeiro grau, não necessariamente os julgadores do tribunal estariam envolvidos nos atos ilegais. É preciso não confundir as coisas. E é bem simples separar o joio do trigo.

No direito chamamos de “móvel” ou “intenção” aquele impulso subjetivo que leva o agente público à prática de determinado ato. É aquele pedacinho de intenção que faz um agente do poder público praticar um ato. O grande jurista Celso Antônio Bandeira de Mello fala de uma representação subjetiva e psicológica do agente, que gera a vontade do agente (intenção) para a prática de um determinado ato. O “móvel” ou “intenção” está “fora” do ato praticado. Pode o móvel contaminar o agente, se a intenção foi ilícita. Mas não contamina, necessariamente, o ato em si. Isso vale para todo o agir no poder público, inclusive no Judiciário.

Imaginemos um guarda de trânsito. A lei dá as funções do cargo e, entre elas multar os motoristas que param na faixa de pedestre. Ocorre que o dono da empresa “X”, concorrente da empresa “Y”, sabe que vários veículos estacionam na faixa de pedestre em frente à concorrente para nela os motoristas fazerem compras. Por isso, o dono da empresa “X” suborna o guarda de trânsito daquele local para não deixar passar em branco nenhuma infração.

Vejamos: as multas podem estar todas legítimas. Se houver um ato ilícito (estacionar sobre a faixa de pedestre), o infrator merecerá receber a multa (prevista em lei), e o guarda terá o poder ou dever legal de multar. Ocorre que mesmo a multa sendo válida, ainda que o infrator de trânsito continue sendo punido, o guarda de trânsito teria cometido um crime, pois agiu mediante suborno. E deverá, se tudo provado, ser punido. Vejamos: se tudo for assim provado. Não bastam também meras suposições. E, lembrando, se o superior hierárquico do guarda de trânsito decidir pela manutenção da multa, não será por isso, também teria sua “intenção” atingida pela ilegalidade.

Muito esquecido o conceito de “móvel” no agir público. Propositalmente os vendedores de favores usam o argumento de que seus atos foram legítimos, “já que foram confirmados posteriormente por outras autoridades”, como se isso alterasse a ilicitude da ação pessoal de cada agente. Por isso, não se pode confundir o ato praticado (se correto estiver) com a intenção (talvez ilícita) do agente ao praticá-lo. E a intenção de um agente não necessariamente contamina a intenção dos demais.

Numa hora dessas é que precisamos sempre voltar nossos olhos aos livros clássicos do Direito, pois ensinam com muita facilidade. Quem complica o direito são esses livros novidadeiros, de conteúdo raso para concurso, com invencionices burlescas e simplificações grotescas.

Por isso, o fato de um tribunal ter confirmado uma decisão inferior, proferida em processos onde existem acusações de “venda de decisões”, não significa que o tribunal esteja envolvido. E, pelo mesmo motivo, não se torna legítima a “intenção” que gerou “decisões vendidas” que estejam sendo investigadas.

O direito não tolera impunidade. Mas também não tolera o assassinato de reputações de pessoas honradas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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