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É doutor em Direito pela USP

Somos viciados no Judiciário. E isso tem que mudar

Para passarmos a ter um Judiciário que funcione, e que não sugue os escassos recursos de nosso povo, temos que nos livrar de nosso vício

  • Marcelo Pacheco Machado É doutor em Direito pela USP
Publicado em 02/02/2022 às 14h01

Judiciário brasileiro é possivelmente o mais produtivo do mundo. Não há juízes, em nenhum outro canto, que produzam mais sentenças por ano que os juízes brasileiros. No ano de 2020, os 18.091 juízes brasileiros julgaram 28 milhões de casos, conforme recém-divulgado relatório “Justiça em Números 2021”, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça.

Somos, além disso, um dos países que mais investem seus recursos com Judiciário, atingindo R$ 100 bilhões de gastos no ano de 2020, ou 1,3 % do Produto Interno Bruto. E isso sem contar com os gastos do Ministério Público e procuradorias.

Tudo isso, todavia, não tem se mostrado suficiente. O tempo médio de tramitação de um processo brasileiro é de 3 anos e 8 meses nas varas estaduais. Em São Paulo, a situação é pior: 4 anos e 11 meses de média.

Então, se nossos juízes são produtivos, e se gastamos muito dinheiro com o Judiciário, por qual motivo temos um dos processos mais lentos e ineficientes do mundo?

Somos viciados em Judiciário. As decisões administrativas do poder público são amplamente passíveis de revisão. As decisões de empresas aéreas, operadoras de plano de saúde, seguradoras, e muitas outras empresas, sobre reembolsos e atendimento ao consumidor, são amplamente passiveis de serem revisadas pelo Judiciário.

A Fazenda Pública não pode executar extrajudicialmente tributos. Os tributos no Brasil são, sempre e repetidamente, passíveis de infindáveis ações anulatórias e questionamentos judiciais. A sentença penal condenatória vale muito pouco. Não produz efeitos, nem mesmo depois de confirmada pelo Tribunal. O juiz tem ampla liberdade para interferir na autonomia privada, nos atos administrativos e, em muitos casos, criar a lei do caso concreto mediante “interpretação” de princípios vazios de conteúdo.

A isso tudo se soma um regime de ampla gratuidade de justiça, seja mediante utilização dos juizados especiais ou de procedimentos como o mandado de segurança, que praticamente representam uma litigância com “risco zero”,  mediante a mera declaração de “miserabilidade”, que autoriza ao autor da ação impor à sociedade 100% dos custos de sua demanda privada. E mais: o Brasil ainda conta com um regime recursal praticamente ilimitado, toda causa é passível de reexame, representando mais demora e mais despesas para o cidadão no custeio da burocracia judicial.

Nos últimos tempos, pensou-se que a conciliação, a mediação e a arbitragem fossem remédios para esses problemas. Que bastaria educar e convencer corações e mentes arraigados pela “cultura do litígio’, para que pudéssemos baixar nossos estoques de causas. O resultado, até o momento, não é satisfatório. O brasileiro não litiga porque foi educado a litigar, litiga porque é barato, porque a incerteza permite que sonhe com resultado positivo e porque as portas estão escancaradas para quem quer usar o Judiciário. Enquanto não houver risco, limites, para o litígio, nosso estoque de processos continuará a crescer exponencialmente.

Não há outra solução, senão aquela seguida pelo resto do mundo. Limitar o acesso ao Judiciário, praticar a autocontenção dos juízes, restringir as gratuidades, estipular filtros para recursos, permitir a eficácia imediata das sentenças, permitir a execução extrajudicial de débitos civis e tributários, restringir as hipóteses em que o Judiciário pode revisar atos administrativos, e sancionar administrativamente as empresas que ofendem os direitos do consumidor, impor verdadeiro risco econômico a quem usa os juizados especiais ou outros procedimentos especiais. É um remédio amargo, sem sobre de dúvidas, mas não se conhece outro.

Não apenas porque os países desenvolvidos, durante o século XX, adotaram medidas desta natureza para evitar uma situação de absoluto caos, mas também, e fundamentalmente, porque já tivemos a oportunidade de observar o resultado prático de tais medidas, perante o nosso próprio sistema.

Ainda que a Justiça do Trabalho, até o momento, apresente grandes problemas em termos de litigiosidade e insegurança jurídica, não é possível negar que que a reforma de 2017 tenha produzido bons frutos. A solução foi singela. No âmbito extrajudicial, aumentou-se a confiabilidade dos acordos, diminuindo os poderes dos juízes de interferência na autonomia das partes. No âmbito processual, acabou-se com o “risco zero” de demandar, estabelecendo que, quem demandar o que não tem direito, deverá sim ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios em favor do advogado da parte contrária.

O resultado é demonstrado pelos números. As partes foram economicamente desencorajadas a litigar. Desde o ano da reforma trabalhista (2017), a Justiça do Trabalho reduziu de 1.770 para 1.214 novos casos, para cada 100.000 habitantes, numa significativa redução de 42% na sua litigiosidade. Entre 2019 e 2020, as despesas com a Justiça do Trabalho reduziram em 8%. O dobro da redução verificada nas Justiças estaduais.

Não há solução fácil. O remédio é amargo e a reabilitação dolorosa. Para passarmos a ter um Judiciário que funcione, e que não sugue os escassos recursos de nosso povo, temos que nos livrar de nosso vício. Restringir ações e recursos, limitar as possibilidades de os juízes interferirem nos atos da administração e nos acordos das partes e, fundamentalmente, criar incentivos econômicos para que processos não surjam.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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