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Sem os encontros do luto na pandemia, tememos não ser lembrados

A Covid-19 nos tirou esse aspecto tão importante de nossa humanidade. Não é apenas sobre o luto, chorar a perda. Mas é, essencialmente, sobre passar pelo momento em que choramos juntos

  • Marcela Bussinguer
Publicado em 29/05/2020 às 13h46
Atualizado em 29/05/2020 às 13h46
Luto, vela, morte
Estamos todos presos, sem desfrutar dos elementos de elaboração coletiva do luto. Crédito: Pixabay

Do ponto de vista civilizacional, a partir do momento em que passamos a criar ritos fúnebres, criamos também a memória, instância necessária para a constituição da pluralidade do ser, que pensa racionalmente, experimenta o mundo e toma consciência de que sabe.

Nesta consciência, relembramos o passado para que tenhamos forças de projetar o futuro.

A Covid-19 nos tirou este aspecto tão importante de nossa humanidade. Não é apenas sobre o luto. É sobre ele também. Chorar a perda. Mas é, essencialmente, sobre passar pelo momento em que choramos juntos, para que possamos ativar a memória, em exercício coletivo de rememoração e compartilhamento.

Neste processo, somos confrontados pela finitude, pelo sopro que vem e logo passa. Somos chamados a compartilhar motivos pelos quais podemos dizer: não foi em vão. Reafirmamos juntos, cada um com seus retalhos da memória, que, embora tenha passado tão brevemente, quem se foi, ficou, deixando elementos de imortalidade.

Acreditar na vida futura não afasta nosso desejo por deixar marcas neste mundo. A mundaneidade é tudo que temos de concreto e, ela mesma, por mais contraditório que possa parecer, anima nossos projetos de paraíso: um novo céu e uma nova terra, mas ainda céu, e ainda terra. Numa conjugação projetada de tudo que acreditamos ser o melhor desta terra, e que já fruímos hoje e agora.

Afastados pelo isolamento, reduzimos a constituição de memórias significativas e tememos não ser lembrados, nem poder lembrar quem se vai. Afinal, a realidade não é apenas o que tocamos, mas se constitui no testemunho compartilhado que fazemos do mundo. Não é fácil ter em conta o “outro”, mas sem “ele” somos menos do que a potência total que cabe no “eu”.

O que chamamos de real pode ser encontrado na conjugação multiforme dos espaços que ocupamos, em equilíbrio harmonioso dos diversos universos nos quais transitamos.

Fomos, todavia, lançados forçadamente, para o universo da casa, que nem sempre é um lar, carregando, pesadamente, todos os demais. Estamos todos presos, observando ao longe os riscos em crescimento vertiginoso, sem desfrutar dos elementos de elaboração coletiva do luto.

A autora é advogada, mestre em Direito pela PUC-MG e doutoranda em Direito da FDV.

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