Que povo brasileiro é este?

Para governo brasileiro, na expressão “povo brasileiro” não há espaço para os modos de vida e direitos dos povos indígenas, que devem deixar de existir sendo incorporados ao que se denomina de “comunidade nacional”

  • Lara Santos Zangerolame Taroco e Renata Bravo
Publicado em 18/07/2020 às 14h00
Atualizado em 18/07/2020 às 14h00
Data: 30/12/2018 - ES - Aracruz - Reportagem Especial Culturas. Tribos indígenas Guaranis e Tupiniquins - Editoria: Caderno Dois - Foto: Ricardo Medeiros - GZ
Tribos indígenas em Aracruz . Crédito: Ricardo Medeiros

reunião ministerial do dia 22 de abril ainda está tendo desdobramentos importantes para a nossa política, justiça e para as reflexões da sociedade. Abraham Weintraub, então ministro da Educação, sem nenhuma surpresa do seu despreparo para ocupar esse relevante cargo público, disse: “Odeio o termo povos indígenas”. Para ele, só existe um único povo e fim de conversa.

A pretensão supostamente neutra e universalizante de unificar identidades múltiplas em um termo como “povo brasileiro” retoma o projeto integracionista, antidemocrático e aniquilador de formas de vida tão presente na história brasileira, principalmente nas relações entre Estado e povos indígenas.

A fala de Weintraub, combinada com as ações e omissões do governo ao qual se alinha, evidencia que em “povo brasileiro” não há espaço para os modos de vida e direitos dos povos indígenas, que devem deixar de existir sendo incorporados ao que se denomina de “comunidade nacional”, enquanto todo supostamente homogêneo.

É perspectiva que nega a Constituição, cujo texto reconhece, valoriza e protege a diversidade étnica e cultural, em suas distintas formas de expressão. Enquanto objeto de uma disputa assimétrica de poder, a identidade e a diferença refletem, também, uma disputa por recursos simbólicos e materiais. Há, portanto, uma estreita conexão entre identidade e diferença e as relações de poder, cabendo então questionar: quem faz as classificações e marca a diferença? Quem determina o que é povo brasileiro e com qual intenção?

Não se trata, portanto, de discurso ingênuo, nem neutro. Ao contrário, funciona como estratégia de justificação para suprimir direitos dos povos indígenas. Ao analisar as repercussões dessas falas, constantemente reproduzidas, é necessário considerar como esse discurso se torna capilar, legitimando ilegalidades como as invasões às terras indígenas, intensificadas no contexto da pandemia de Covid-19, tanto pela capacidade reduzida de atuação dos órgãos de fiscalização; quanto pelo fato de sujeitos se sentirem autorizados a promoverem ações ilegais de invasão, confiando em declarações como “não haverá mais demarcação de terras indígenas”, dadas pelo Presidente da República.

Assim, as lutas sobre significado são também lutas sobre diferentes modos de ser, ou seja, diferentes identidades, como prevê a Constituição ao reconhecer aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, visando garantir seu bem-estar e sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

É, portanto, previsão que rompe com o assimilacionismo, que não encontra embasamento constitucional, mas ainda segue habitando velada e evidentemente as ações e os discursos governamentais, para quem não há lugar para indígenas nos tempos de hoje. E será que para essa visão carregada de preconceito e interesses econômicos não declarados algum dia houve espaço para diferentes modos de vida?

As autoras são, respectivamente, doutoranda em Direito pela Unisinos, bolsista CAPES e mestra pela FDV; e mestra em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

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