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É advogada, professora de Direito e mestranda pela FDV

Por que Sérgio Moro não é nenhum baluarte da moralidade

Falar de justiça e de repulsa à impunidade é só dizer o óbvio. O discurso republicano e democrático, em contrapartida, não é fácil. Às vezes até contraintuitivo

  • Lígia Kunzendorff Mafra É advogada, professora de Direito e mestranda pela FDV
Publicado em 28/02/2023 às 14h18

Muito me chamou a atenção o artigo intitulado “Moro é uma voz no deserto clamando pela volta do combate à corrupção”. Discordo totalmente de todas as suas premissas e aqui direi o porquê.

Há grandes problemas de cunho histórico e técnico naquelas colocações. Eu me apegaria apenas a três (já que para discuti-las todas, esse espaço seria insuficiente), mas que são imprescindíveis para o esclarecimento de o porquê o equívoco ser tão grande. Primeiro ponto: a crítica dirigida ao STF sobre o suposto uso de “tecnicalidades” para “anular sentenças e libertar condenados”. Segundo ponto: o projeto de lei do ex-juiz/ex-ministro e agora, senador, no que concerne ao cumprimento de pena após a condenação em segunda instância. E por fim o terceiro ponto: as provas ilegais em que se baseou pela decisão da parcialidade de Moro na condução da Lava Jato.

Pois bem. De pronto o que se pode dizer é: o que o autor chamou de “tecnicalidades” são garantias. Garantias constitucionais. Estão todas lá no artigo 5º da Constituição de 1988. A técnica no processo penal não é dispensável nem conversível ao gosto da moralidade de cada julgador. Elas existem porque são as próprias regras do jogo. Sem “tecnicalidades” não existe nem processo e nem democracia.

É fácil se deixar levar pelo discurso de que se fez justiça apesar de não se respeitar a forma do processo. Mas só até a página dois. E isso porque o próprio conceito de justiça é amplo e subjetivo. Há milênios que se discute a sua natureza. Certamente não é um juiz entre tantos que saberá, com certeza, o que é justo ou não – se é que existe uma justiça universal e atemporal. Mas isso leva a outro ponto. Esse discurso de que as “tecnicalidades” devem ser suplantadas em benefício de um conceito moral vigente (um bem maior) não é novo. Já foi usado na história por diversas vezes. A interpretação do direito já foi revirada ao avesso sem a necessidade de mudança de uma letra da lei sequer. O exemplo mais evidente é o nazismo de Hitler.

O ex-juiz Sérgio Moro
O ex-juiz Sérgio Moro. Crédito: Saulo Rolim | Podemos

Impactante? Talvez. Mas foi exatamente esse o mecanismo utilizado pelo terceiro Reich para criar um dos maiores horrores do mundo. A degeneração do direito ocorreu dentro dele mesmo. Bastou uma interpretação ao gosto da moral – nazista – do juiz e o desapego às técnicas que atrapalhavam a concretização do nacionalismo alemão em seu máximo. Apenas após operado um verdadeiro estrago na teoria do direito é que o Reich efetivamente editou leis que terminavam de jogar a pá de cal nos judeus, negros e outros povos inferiorizados por aquele regime.

E que não se diga que o nazismo foi loucura e que jamais se repetiria. As técnicas de desapego à formalidade e ideações de uma moral superior ao direito são usadas há ainda mais tempo antes e continuaram a serem usadas depois. Variam apenas as pitadas que o momento histórico e a região requerem. Antes que se possa fazer qualquer interpretação enganosa: não. Moro não é nazista. O que se pretende demonstrar é que os mecanismos jurídicos usados por vários regimes não democráticos pelo mundo foram e são mais ou menos os mesmos.

Em relação ao projeto de lei que institui o cumprimento da prisão após a condenação em segunda instância há um problema intransponível: a Constituição vigente. A Constituição da República estabelece que apenas se considerará culpado aquele condenado em processo transitado em julgado. Toda prisão antes disso tem caráter precário. Mais uma “tecnicalidade” na cabeça de uns, garantia de civilidade e liberdade para muitos.

E que nem se fale que o entendimento foi revisto pelo STF e que se fosse inconstitucional não teriam decidido pela primeira vez. Entre alguns grandes erros da Corte nos últimos anos, esse talvez tenha sido o maior justamente porque consideraram que o “clamor das ruas” era tão importante quanto a Constituição, dando um papel absurdo à Corte Constitucional de “alter ego” da sociedade, se descolando do direito e da legalidade e indo em direção à moralidade (novamente o problema apontado no primeiro ponto abordado).

Por fim, mas não menos curioso, é a alegação de que foi com base em provas ilícitas que foi escancarada a parcialidade de Sérgio Moro. E agora? Quem está se apegando às “tecnicalidades”? Poderia até terminar aqui, mas não seria coerente com o ponto de vista antes exposto. O fato é: há mais uma “tecnicalidade” que estabelece que as provas ilícitas podem ser usadas para beneficiar o réu.

Falar de justiça e de repulsa à impunidade é só dizer o óbvio. O discurso republicano e democrático, em contrapartida, não é fácil. Às vezes até contraintuitivo. Mas é bom lembrar que fora dele, só há autoritarismo e barbárie.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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