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É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Políticas omissas com a cultura são também omissas com o cidadão

Ironia trágica que no mesmo dia da reabertura do Museu da Língua Portuguesa, após seis anos de reforma, a Cinemateca tenha sido tomada pelas chamas do descaso

  • Pedro Sampaio Minassa É advogado e mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Publicado em 06/08/2021 às 02h00
Incêndio atinge depósito da Cinemateca Brasileira em São Paulo
Incêndio atingiu galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Crédito: Reprodução/ Twitter/ @ErikakHilton

“O passado não volta. Importantes são a continuidade e o perfeito conhecimento de sua história. A defesa do patrimônio cultural não pode ter fraturas”, disse Lina Bo Bardi. A cultura é um bem imaterial que depende da memória coletiva. Ainda que possamos materializar cultura em galerias e museus, ela permanece totalmente dependente do imaterial, que é a memória.

Um povo deve se enxergar em seu acervo material e, para isso, precisa cultivar a cultura da imaterialidade, da educação para o cuidado. Ao atingirmos a materialidade, deixando queimar museus e cinematecas, estamos atingindo também a imaterialidade, o singular que nos faz coletivo no mundo.

Será que não reconhecemos o que somos por causa da indiferença com o que temos ou, por não reconhecermos o que somos, somos indiferentes ao que temos? Políticas omissas com a cultura são omissas com a polis (cidade), com o cidadão e, por isso, não são políticas genuínas.

É notório que as principais plataformas de governos autocráticos sejam anticientíficas e anticulturais. A ciência só importa se chancelar os delírios do autocrata, e a arte pouco importa. A irreverência da arte e o rigor metodológico da ciência irritam os autocratas tresloucados. Para eles, a irreverência deve ser silenciada, criminalizada e esquecida, valendo somente se direcionada contra o Estado Democrático de Direito.

Nada que não seja dócil e disciplinado presta, pois para governos tais, artistas são revolucionários que filmam um mundo impossível, instigando o aparato moralizante da censura. O rigor também lhes é útil, mas não o científico, gostam do rigor das queimadas e do extermínio. Tudo que é muito científico é pouco fiel à divindade encarnada no autocrata. Aos cientistas, o fogo do inferno do apagão de dados e de investimentos. Aos artistas, as chamas do esquecimento.

Ironia trágica que no mesmo dia da reabertura do Museu da Língua Portuguesa, após seis anos de reforma, a Cinemateca tenha sido tomada pelas chamas do descaso. O conjunto da obra é péssimo para um povo que ignora sua arte, cultura e história. Minadas estão as suas chances de um dia emancipar-se do anonimato.

Após o fim da Segunda Guerra, os alemães optaram por preservar as estruturas dos campos de concentração como símbolos do que um coletivo desinformado é capaz de fazer. Talvez seja essa uma boa saída para as tragédias anunciadas do Brasil. Ao invés de revitalizar tudo o que restou, deixar bem à vista de todos os destroços e as cinzas. Reservar uma ala de museu queimado pela negligência e expor um acervo de filmes destroçados pelo descaso.

Danos à cultura são irreversíveis, porque causam uma fratura indelével no constructo da memória coletiva. Não foi apenas um punhado de coisas velhas queimando na Cinemateca, mas incinerada a história do nosso audiovisual. Cremamos a nós mesmos, quando esquecemos do patrimônio cultural do Brasil. Tragédias anunciadas desembocam em memórias renunciadas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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