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O Brasil precisa de... mais honestidade intelectual

A longo prazo, a consolidação da desonestidade intelectual como recurso retórico poderá implicar a prevalência de interpretações simplistas e parciais dos fatos, com evidentes prejuízos para o enfrentamento dos problemas mais relevantes

  • Hugo Schneider Côgo É associado do Instituto Líderes do Amanhã
Publicado em 16/09/2021 às 14h00
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Comportamento é anabolizado por aplicativos de trocas de mensagens e de redes sociais. Crédito: Freepik

“Bola dentro. Máquina federal tem enxugamento inédito de servidores. Participam hoje dessa engrenagem 208 mil servidores públicos estatutários. No auge, em 2007, eles eram 333,1 mil. Economia de R$ 2 bilhões se comparado a 2018."

Não faz muito tempo que recebi, por meio de um aplicativo de mensagens, uma imagem dos atuais presidente presidente da República e do ministro da Economia sobreposta com esses dizeres, certamente com o propósito de elogiar a atuação desses agentes políticos. Repare-se que a redução do número de servidores públicos e a consequente economia para os cofres da União foram isoladamente tratadas como um dado necessariamente positivo, isto é, por si só reveladores do suposto sucesso da atuação do governo federal.

Entre todas as relevantes questões que o assunto da mensagem circulada poderia suscitar, o que mais me deu razões para refletir naquele dia em particular (e ainda o faz, para ser franco) é a escancarada desonestidade intelectual por de trás daquele conteúdo.

À primeira vista, o relato sobre a redução da despesa da União com vencimentos de servidores públicos parece sedutor. Todavia, nenhuma linha é dedicada a explicar o que o governo federal efetivamente realizou ou planeja realizar com essa disponibilidade financeira.

Mais importante, ao focar exclusivamente na queda das despesas com servidores estatutários, a mensagem deixa de abordar aquele que deveria ser realmente o cerne da discussão: a qualidade dos serviços públicos. Não há motivos para comemoração se a redução da quantidade de servidores estatutários na administração pública federal não houver sido acompanhada de uma melhoria dos serviços públicos em comparação aos períodos anteriores.

Muito pelo contrário, se a redução do número de servidores implicar prejuízo para o desempenho de atividades que a União se encontra constitucional e legalmente obrigada a executar, esse fato deve ser objeto de severas críticas.

Ocorre que, para quem elabora e compartilha aquele tipo de mensagem, o único dado relevante é que R$ 2 bilhões foram economizados, em nada importando a destinação desses recursos ou o desempenho da administração pública federal. Não alimento o menor receio de afirmar que aqueles que agem dessa maneira atuam com o que chamo de desonestidade intelectual, que consiste na utilização de argumentos que se sabe serem falsos ou enganosos, em particular por meio da omissão ou distorção de informações.

No caso da mensagem que abre este artigo, as pessoas que a propagam têm conhecimento de que a redução do número de servidores estatutários não é um dado necessariamente positivo, pelas razões expostas acima, e ainda assim buscam induzir o destinatário a acreditar que o governo federal efetivamente lhe proporcionou algo de bom, independentemente da destinação do dinheiro economizado ou de uma avaliação acerca do aprimoramento dos serviços públicos.

Esse tipo de comportamento, que é anabolizado por aplicativos de trocas de mensagens e de redes sociais, mostra-se especialmente preocupante em momentos de alta polarização política, quando ganha força o vale-tudo retórico que, com amparo de um abusivo exercício do direito à liberdade de expressão, busca normalizar a propagação de ofensas e de desinformação.

O problema cresce em escala quando os agentes políticos se engajam diretamente na disseminação de argumentos falsos, enganosos, desvirtuados ou omissos relativamente a algum dado essencial. Por exemplo, basta consultar os perfis de deputados federais e senadores nas redes sociais para, invariavelmente, se deparar com informações claramente distorcidas que visam à mobilização da sua base eleitoral, que também passa a atuar como difusora desse conteúdo.

Não é exagero dizer que alguns agentes políticos incorporaram a desonestidade intelectual à sua comunicação oficial e a transformaram em uma ferramenta de alavancagem junto ao eleitorado.

Posicionar-se contra a desonestidade intelectual exige um grande ônus argumentativo, uma vez que os seus praticantes endereçam, de maneira muito superficial, temas que facilmente despertam paixões e para os quais a maioria das pessoas já possui alguma opinião.

Com efeito, se o objetivo é atrair avaliações positivas para o governo federal, afirmar simploriamente que houve uma economia de R$ 2 bilhões é muito mais simples do que apresentar uma demonstração de como essa economia foi aproveitada pela administração pública ou como os serviços públicos federais foram aprimorados, sobretudo quando esses fatos não podem ser facilmente demonstrados ou sequer se realizaram.

Diante disso, não tenho dúvidas de que, a longo prazo, a consolidação da desonestidade intelectual como recurso retórico poderá implicar a prevalência de interpretações simplistas e parciais dos fatos, com evidentes prejuízos para o enfrentamento dos problemas mais relevantes para a nossa sociedade.

Caso você esteja entre aqueles que, assim como eu, são incapazes de receber acriticamente o teor da mensagem que abriu este texto, saiba que temos um longo caminho a percorrer para restabelecer a importância do compromisso com a realidade e com a reponsabilidade por cada palavra compartilhada.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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