A nova ofensiva tarifária de Donald Trump contra o Brasil — um aumento unilateral de 50% sobre exportações brasileiras — evidencia o embate entre duas lógicas em tensão permanente: o poder econômico soberano como instrumento geopolítico e a arquitetura normativa multilateral erigida desde Bretton Woods para conter precisamente esse tipo de arbítrio.
No comércio internacional contemporâneo, a guerra de tarifas deixou de ser uma exceção. Tornou-se sintoma. Sintoma da erosão de instituições que, embora imperfeitas, ofereciam previsibilidade e mecanismos de contenção. A Organização Mundial do Comércio (OMC), principal árbitro desse sistema, viu sua eficácia reduzida desde que os Estados Unidos passaram a bloquear, em 2019, as nomeações ao seu Órgão de Apelação — peça central no sistema de solução de controvérsias. O resultado prático é um “tribunal sem juiz”, e, portanto, sem capacidade coercitiva.
No caso do Brasil, as justificativas públicas apresentadas pelo governo norte-americano para a adoção das tarifas majoradas foram múltiplas: desde alegações de desequilíbrio comercial até argumentos relacionados à segurança nacional, agravadas por tensões políticas e preocupações setoriais como meio ambiente e comércio digital.
Trump retoma a lógica do self-help, típica da era pré-GATT, para justificar sobretaxas sobre produtos estratégicos — como o cobre, insumo-chave para a transição energética e a indústria de defesa. A tática não é nova. Em 2002, por exemplo, George W. Bush adotou medidas semelhantes ao sobretaxar o aço. A diferença? Naquele contexto, a OMC funcionava. A União Europeia e outros países recorreram ao mecanismo de solução de controvérsias, obtiveram autorização para retaliar, e forçaram a retirada das tarifas.
A criação da Arbitragem de Apelação Provisória (MPIA), formada por UE, Brasil, Canadá e outros membros, busca preencher essa lacuna — mas os EUA não aderiram. Disputas envolvendo Washington ficam, assim, paralisadas se houver apelação.
Isso gera um efeito sistêmico preocupante: corrói a confiança na previsibilidade das regras do comércio internacional, desincentiva investimentos e amplia a margem de manobra dos Estados hegemônicos.
Diante desse quadro, no Brasil, a diplomacia comercial vem assumindo protagonismo: missões técnicas foram mobilizadas para pressionar o USTR, o Departamento de Comércio e o Congresso norte-americano; a interlocução com importadores dos EUA visa evidenciar os potenciais impactos inflacionários da medida; e articulações plurilaterais com países igualmente atingidos, como Canadá, UE e Austrália, buscam construir uma coalizão simbólica de pressão reputacional.
Também estão sendo viabilizadas possíveis medidas paliativas setoriais: pedidos de exclusão tarifária, negociações bilaterais por cotas, acordos voluntários de preços mínimos e formação de frentes empresariais com compradores americanos.
No plano jurídico-comercial, em última instância, abrem-se alternativas complementares. Importadores norte-americanos prejudicados podem questionar as tarifas judicialmente com base em princípios constitucionais. O Brasil inclusive pode atuar como amicus curiae nesses litígios, à semelhança do que fez o Canadá no caso softwood lumber.
Empresas brasileiras com presença nos EUA podem acionar arbitragens internacionais com base em tratados de investimento, sob fundamentos como a quebra de expectativa legítima e a violação do tratamento justo e equitativo — tese já explorada no setor de alumínio.
Cabe ao Estado brasileiro coordenar essas frentes, articulando canais bilaterais e multilaterais que restabeleçam algum grau de previsibilidade regulatória por vias técnicas, diplomáticas ou compensatórias.
Como estamos vendo, o “tarifaço” de Trump não é um episódio isolado, mas parte de um movimento global de renacionalização da política comercial. Tarifas, subsídios e barreiras não tarifárias retornam à cena como instrumentos de disputa, agora inclusive sob o verniz de políticas digitais.
A crise é menos sobre tarifas específicas e mais sobre a arquitetura institucional que sustentará — ou não — a próxima fase da globalização.
Para países médios, a erosão das instituições internacionais não é apenas um incômodo técnico. É um risco existencial: sem árbitros funcionais, a balança se inclina a favor de quem tem mais mercado, mais lobby, ou mais tempo.
Neste contexto, a diplomacia assume o papel de ferramenta estratégica de sobrevivência econômica. A negociação internacional — ainda que imperfeita e desigual — emerge como a principal via de contenção dos excessos, reposicionamento de interesses e reinserção soberana nas cadeias globais. Quando os tribunais falham, o diálogo se torna a última forma de resistência ao colapso das regras.
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