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É advogada, sócia-fundadora do Mattar Vilela Advogados

Na era Trump, guerra de tarifas deixou de ser uma exceção

Para países médios, a erosão das instituições internacionais não é apenas um incômodo técnico. É um risco existencial: sem árbitros funcionais, a balança se inclina a favor de quem tem mais mercado, mais lobby, ou mais tempo

  • Luciana Mattar Vilela Nemer É advogada, sócia-fundadora do Mattar Vilela Advogados
Publicado em 18/07/2025 às 14h06

A nova ofensiva tarifária de Donald Trump contra o Brasil — um aumento unilateral de 50% sobre exportações brasileiras — evidencia o embate entre duas lógicas em tensão permanente: o poder econômico soberano como instrumento geopolítico e a arquitetura normativa multilateral erigida desde Bretton Woods para conter precisamente esse tipo de arbítrio.

No comércio internacional contemporâneo, a guerra de tarifas deixou de ser uma exceção. Tornou-se sintoma. Sintoma da erosão de instituições que, embora imperfeitas, ofereciam previsibilidade e mecanismos de contenção. A Organização Mundial do Comércio (OMC), principal árbitro desse sistema, viu sua eficácia reduzida desde que os Estados Unidos passaram a bloquear, em 2019, as nomeações ao seu Órgão de Apelação — peça central no sistema de solução de controvérsias. O resultado prático é um “tribunal sem juiz”, e, portanto, sem capacidade coercitiva.

No caso do Brasil, as justificativas públicas apresentadas pelo governo norte-americano para a adoção das tarifas majoradas foram múltiplas: desde alegações de desequilíbrio comercial até argumentos relacionados à segurança nacional, agravadas por tensões políticas e preocupações setoriais como meio ambiente e comércio digital.

Trump retoma a lógica do self-help, típica da era pré-GATT, para justificar sobretaxas sobre produtos estratégicos — como o cobre, insumo-chave para a transição energética e a indústria de defesa. A tática não é nova. Em 2002, por exemplo, George W. Bush adotou medidas semelhantes ao sobretaxar o aço. A diferença? Naquele contexto, a OMC funcionava. A União Europeia e outros países recorreram ao mecanismo de solução de controvérsias, obtiveram autorização para retaliar, e forçaram a retirada das tarifas.

A criação da Arbitragem de Apelação Provisória (MPIA), formada por UE, Brasil, Canadá e outros membros, busca preencher essa lacuna — mas os EUA não aderiram. Disputas envolvendo Washington ficam, assim, paralisadas se houver apelação.

Isso gera um efeito sistêmico preocupante: corrói a confiança na previsibilidade das regras do comércio internacional, desincentiva investimentos e amplia a margem de manobra dos Estados hegemônicos.

Diante desse quadro, no Brasil, a diplomacia comercial vem assumindo protagonismo: missões técnicas foram mobilizadas para pressionar o USTR, o Departamento de Comércio e o Congresso norte-americano; a interlocução com importadores dos EUA visa evidenciar os potenciais impactos inflacionários da medida; e articulações plurilaterais com países igualmente atingidos, como Canadá, UE e Austrália, buscam construir uma coalizão simbólica de pressão reputacional.

Também estão sendo viabilizadas possíveis medidas paliativas setoriais: pedidos de exclusão tarifária, negociações bilaterais por cotas, acordos voluntários de preços mínimos e formação de frentes empresariais com compradores americanos.

No plano jurídico-comercial, em última instância, abrem-se alternativas complementares. Importadores norte-americanos prejudicados podem questionar as tarifas judicialmente com base em princípios constitucionais. O Brasil inclusive pode atuar como amicus curiae nesses litígios, à semelhança do que fez o Canadá no caso softwood lumber.

Empresas brasileiras com presença nos EUA podem acionar arbitragens internacionais com base em tratados de investimento, sob fundamentos como a quebra de expectativa legítima e a violação do tratamento justo e equitativo — tese já explorada no setor de alumínio.

Cabe ao Estado brasileiro coordenar essas frentes, articulando canais bilaterais e multilaterais que restabeleçam algum grau de previsibilidade regulatória por vias técnicas, diplomáticas ou compensatórias.

Vista da Casa Branca na cidade de Washington DC nos Estados Unidos
Vista da Casa Branca na cidade de Washington DC nos Estados Unidos. Crédito: Vanessa Carvalho/Brazil Photo Press/Folhapress

Como estamos vendo, o “tarifaço” de Trump não é um episódio isolado, mas parte de um movimento global de renacionalização da política comercial. Tarifas, subsídios e barreiras não tarifárias retornam à cena como instrumentos de disputa, agora inclusive sob o verniz de políticas digitais.

A crise é menos sobre tarifas específicas e mais sobre a arquitetura institucional que sustentará — ou não — a próxima fase da globalização.

Para países médios, a erosão das instituições internacionais não é apenas um incômodo técnico. É um risco existencial: sem árbitros funcionais, a balança se inclina a favor de quem tem mais mercado, mais lobby, ou mais tempo.

Neste contexto, a diplomacia assume o papel de ferramenta estratégica de sobrevivência econômica. A negociação internacional — ainda que imperfeita e desigual — emerge como a principal via de contenção dos excessos, reposicionamento de interesses e reinserção soberana nas cadeias globais. Quando os tribunais falham, o diálogo se torna a última forma de resistência ao colapso das regras.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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