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É advogado, doutor em Direito. Professor da FDV

Julgamento de Jair Bolsonaro: não há procedimento?

O processo criminal não é repleto de formalidades, exigências e “travas” ao exercício do poder punitivo à toa. Cada aspecto dos ritos processuais penais está ligado a uma conquista humanitária e/ou a alguma garantia fundamental

  • Israel Domingos Jorio É advogado, doutor em Direito. Professor da FDV
Publicado em 05/09/2025 às 14h45

Ai de quem, em um certo Estado democrático de Direito, em pleno século XXI, ousar fazer análises técnicas sobre questões jurídicas que envolvam nuances políticas. É preciso muita coragem e até um pouco de falta de juízo, pois passamos do tempo em que o comentarista estaria exposto apenas a críticas injustas de pessoas leigas. Atualmente, o receio é com inquéritos, processos, tornozeleiras e até prisões. Por emitir opinião. Opinião técnica. Fundamentada.

Não há escassez de eventos políticos e jurídicos grandiosos (e confusos) nas duas últimas décadas. Mega-operações de combate ao crime do colarinho branco e à corrupção (Lava Jato, mensalão), com posterior anulação de quase todos os seus resultados. Impeachment (Dilma). Prisão polêmica de deputado (Silveira). Moro condena Lula, vira ministro de Bolsonaro e se torna inimigo mortal dos dois. Lula é inocentado, se reelege, Bolsonaro é processado e está na iminência de ser preso. Humorista tem piada punida com pena de homicídio doloso. Mulher tem pena de genocídio por “pichação com batom”.

Atualmente, estamos lidando com tentativa de golpe de Estado, sanções internacionais e quebra de soberania. Cada um desses acontecimentos é contado e avaliado de modo muito diferente, de acordo com o viés político-ideológico e o pertencimento ao grupo favorecido ou desfavorecido. Pratos cheios para ânimos exaltados, desavenças e ofensas.

Nesse cenário caótico, marcado por instabilidades e perda de referências, o Supremo Tribunal Federal tem exercido um papel improvável. Um papel de unificação. Inimigos vêm hasteando a mesma bandeira, adversários vêm se abraçando. Por mais ferrenhas que sejam as oposições, e por mais diametralmente contrárias que sejam as ideias, o STF, com algumas de suas atuações, tem conseguido a proeza de promover um inacreditável consenso: é raro encontrar alguém que discorde de que ele está ultrapassando seus limites constitucionais. Pode-se dizer, então, que o STF tem sido democrático, porque vem conseguindo desagradar a todos, igualmente. E não nos referimos à população.

Embora uma pesquisa de opinião talvez revele uma impopularidade grande e ainda crescente da Corte Suprema, isso não é, em si, um problema. Com frequência, as decisões judiciais, que devem ser técnicas e desapaixonadas, serão contramajoritárias e irritarão a maioria dos cidadãos. Mas isso pouco importa. Magistrados não ocupam cargos eletivos e não dependem da opinião popular. Seu papel é de dizer o direito, com base em princípios e regras jurídicas, por mais antipáticas que suas sentenças sejam.

Ao dizer “desagradar a todos”, referimo-nos a analistas qualificados, oriundos das mais diversas escolas de pensamento, orientações filosóficas e afeições político-partidárias. Referimo-nos, inclusive, a magistrados de instâncias inferiores (juízes e desembargadores) que, se fizerem um décimo do que a Suprema Corte vem fazendo, provavelmente responderão a Processos Administrativos Disciplinares ou mesmo a ações penais.

Nesse contexto, o espetacular (e espetaculoso) julgamento de Jair Bolsonaro (misantropo com feições tirânicas que não chegou mais longe porque não houve tempo suficiente) faz disparar um alarme que deveria incomodar a cada um de nós: o procedimento não existe.

O processo criminal não é repleto de formalidades, exigências e “travas” ao exercício do poder punitivo à toa. Cada aspecto dos ritos processuais penais está ligado a uma conquista humanitária e/ou a alguma garantia fundamental. Se a ideia é facilitar a condenação, a primeira coisa a fazer é dispensar o procedimento e suas formalidades.

Segundo dia de julgamento no STF dos envolvidos em trama golpista
Segundo dia de julgamento no STF dos envolvidos em trama golpista. Crédito: Rosinei Coutinho/STF

Se temos incontáveis normas para estabelecer os parâmetros de atuação da Justiça, é porque entendemos, como sociedade, que condenações somente são aceitáveis dentro das estritas regras do jogo. Punições à margem dos parâmetros constitucionais prestam desserviço. O problema se agrava quando quem está descumprindo a Constituição é quem a deveria estar resguardando.

No julgamento de Bolsonaro (cuja eventual condenação talvez seja justa e merecida, mas não vem ao caso), vemos uma amplificação de tudo o que ocorre de pior em termos de irregularidades técnicas processuais penais nas comarcas e tribunais, Brasil afora. A fusão dos papéis do julgador e do acusador fulmina o sistema acusatório e nos leva à baixa Idade Média. A inclusão, nesse rol, do papel da vítima, ciando quase uma Santíssima Trindade judiciária, completa a viagem no tempo e nos conduz à Pedra Lascada.

Esse é só o aspecto mais gritante. Mas foram inventadas medidas cautelares, negado acesso aos autos, cassadas palavras de advogados. Não importa se você é um “patriota” ou algum “ista” (lulista, petista, bolsonarista, ou só jurista), lembre-se sempre: direitos e garantias fundamentais não devem ser regalias para pessoas “de bem”, porque se há uma coisa que a história da humanidade mostra (e a história Brasileira recente escancara), é que o “bem” e o “mal” são conceitos móveis, que dançam ao som das oscilações da Política e do Poder. E é exatamente aí que deveria entrar o STF, para impedir que isso acontecesse. Como diz J.M. Adeodato, somos ainda uma democracia jovem, com instituições em amadurecimento, e ainda vamos aprender. Espera-se.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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