Autor(a) Convidado(a)
É fundadora da Go On Agro Consultoria, especialista em gestão pecuária e zootecnista

Estamos assistindo ao fim do produtor de leite?

O abandono da atividade e a concentração da produção, que até então ocorria basicamente na agricultura familiar, vêm crescendo

  • Renata Erler É fundadora da Go On Agro Consultoria, especialista em gestão pecuária e zootecnista
Publicado em 20/03/2024 às 10h00

O cenário do negócio do leite vem sofrendo alterações desde 2021, com redução do rebanho e produtores saindo da atividade em vários estados, o que em 2022 resultou em alta nos preços pela redução da oferta, comprometendo o consumo pela população devido a questões econômicas.

Os principais fatores que afetaram diretamente os preços do leite foram redução da produção, alta nos preços dos principais insumos nutricionais (milho e soja), consequente queda da captação pela indústria, mudança crescente do sistema de produção para confinamento, fenômenos climáticos em sequência (La Niña e El Niño), aumento no preço dos combustíveis, inflação e aumento da cotação do dólar.

Considerando tudo isso, a inflação medida em 2022 pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi 5,8%, sendo que alimentação e bebidas alcançaram 12,4%. De todos os itens desse grupo, o que apresentou peso alto e maior variação foi “leite e derivados”, com 22,1%.

Ainda em 2022, a produção de leite reduziu 5% em relação a 2021, com quase 1 bilhão de litros a menos, o que levou à necessidade do aumento nas importações, que subiram 26,3%. Isso representa 10% do total consumido internamente, o que é muito preocupante, já que anteriormente o patamar variava entre 3% à 5%, segundo a Embrapa. Com isso, no decorrer do ano de 2023, assistimos a uma corrosão dos preços pagos ao produtor.

Isso ocorre com frequência, sempre que o mercado interno fica desfavorável, para garantir o abastecimento interno a preços competitivos, porém, aumentar e manter em percentual elevado a importação tem prejudicado os produtores. O abandono da atividade e a concentração da produção, que até então ocorria basicamente na agricultura familiar, vêm crescendo.

Essa é uma tendência mundial, que funciona como “uma estratégia que busca mais eficiência, com necessidade de escala para reduzir custos e ter rentabilidade maior”. Dados da Embrapa sinalizam que a concentração da atividade ocorre em propriedades com maior escala e redução de rebanho. Hoje temos 2% dos estabelecimentos produzindo 30% do leite do país, sendo que essa transformação vem ocorrendo em uma escala média de 1% das fazendas em operação.

Esse modelo concentrador já ocorreu em vários setores da agricultura, o que trouxe novas características ao mercado de cada produto alimentício, com consequente condução do mercado e diminuição da concorrência, atuando conforme interesse das empresas e muitas vezes com restrição da oferta de produtos e preços mais altos. Isso mostra a necessidade de políticas públicas para os médios e pequenos produtores.

Para encontrar a solução dentro das fazendas, precisamos parar de falar em volume produzido e faturamento, e começar a falar de margem. Vários artigos só tratam de volume, e apontam grande distanciamento tecnológico entre grandes e pequenos produtores, a diferença existe, mas não é tão grande assim, pois pequenas propriedades têm pastejo rotacionado, adubam, inseminam, fazem transferência de embrião, produzem comida para a seca, ou seja, tem muitos produtores pequemos altamente tecnificados.

FertBovi quer difundir informações sobre os benefícios da genética animal para melhorias do rebanho do gado de leite e de corte
Gado leiteiro. Crédito: Semex/Divulgação

Mas não conseguem margem positiva por três motivos fundamentais: falta de gestão, resistência à venda de animais e acentuada apuração  da genética para o gado europeu, que não é adaptado para o sistema a pasto (presente em pelo menos 90% das propriedades brasileiras).

O animal errado no sistema errado resulta em aumento no volume do leite produzido, porém, falta ambiência, o animal adoece mais, a dependência de cocho é maior, e dessa forma o custo sobrepõe a receita. O resultado é um produtor cansado e descapitalizado, orientado a migrar para sistemas confinados que vão exigir mais desembolso, maior nível de endividamento, e refinamento da gestão. Nesse ponto, muitos desistem da atividade.

QUEDA NÃO É FATO ISOLADO

A redução da produção de leite não é um fato isolado ao Brasil, mas vem ocorrendo em países como a Nova Zelândia (maior exportador de leite do mundo), que está com sua produção estagnada. Acontece o mesmo na União Europeia, e países da América Latina também têm tido crescimento pífio nos últimos anos. Apenas nos Estados Unidos tem havido aumento.

Há outros pontos a se considerar. As questões ambientais apontam o aumento das restrições ao crescimento do plantel baseado em expansão de área. Também ocorre incentivo à redução de consumo de produtos da pecuária bovina, substituindo-os por bebidas de produtos vegetais. Assim, aponta-se a necessidade de investir em sistemas mais eficientes, como integração lavoura-pecuária (ILP) ou integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF).

Existe ainda a utilização do confinamento, que tem se mostrado tendência crescente na pecuária de leite. Esse modelo leva à necessidade de maior investimento na alimentação animal, com preferência a alimentos alternativos, já que milho e soja exigiriam aumento de seu cultivo e expansão de suas produções. Esses novos modelos têm crescido e, para efetivá-los, é preciso investimentos na área produtiva ou, no caso do confinamento, em tecnologia para sua implantação.

Entendo que para alcançar maior produtividade, eficiência e margem são vários os pontos que têm sido colocados como necessários ou como oportunidades dentro da porteira. Gestão do custo de produção, de dados, de pessoas, respeitar a composição de receita sendo leite, venda de animais, e outras possíveis receitas, e o fundamental, utilizar a composição genética específica que respeite o sistema produtivo que se tem. Neste ponto, destaco as cooperativas, que têm papel fundamental, com grande potencial para serem o principal elo entre o produtor e todas as soluções necessárias.

Para alcançar esses objetivos, há necessidade de investimentos e nem sempre o pequeno e médio produtor tem conhecimento desses tópicos por falta de assistência técnica pública e acesso a financiamentos. Ou seja, fora da porteira, se fazem necessárias políticas públicas efetivas para atender esses produtores, orientando-os e propondo técnicas e tecnologias acessíveis que o ajudem, aumentando a qualidade e a produtividade do leite, sem a necessidade de altos investimentos iniciais, garantindo sua permanência no negócio.

E quanto ao mercado, existe um movimento livre comandado pela oferta e demanda, o que significa dizer que sempre teremos momentos de alta e baixa, o que exige resiliência da atividade. Para isso, a melhor solução nunca será simplesmente aumentar a importação, portanto, mais uma vez a política pública terá papel importante ao estabelecer limites que não prejudiquem a cadeia produtiva nacional.

Os problemas da atividade são complexos e por isso a gestão em todos os níveis é fundamental, e é exatamente esse fator que promove eficiência produtiva, margem e determina quem segue ou não na atividade. Que num futuro próximo as discussões sejam sobre lucro por hectare e margem, e não mais sobre volume e faturamento, que não dizem nada sobre a viabilidade do negócio.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Agropecuária

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.