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É advogada popular e assessora técnica da ADAI. Escreve sobre acesso à justiça, democracia, direitos fundamentais e justiça socioambiental, com foco em reparação e transparência institucional. Integra a RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) e a ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)

Entre retrocessos e mordaças: a noite em que o Congresso negociou a democracia

Esses movimentos não são isolados. Revelam uma captura do processo legislativo por agendas que flexibilizam garantias constitucionais e reduzem a intolerância ao autoritarismo

  • Emanuelli Carvalho dos Santos É advogada popular e assessora técnica da ADAI. Escreve sobre acesso à justiça, democracia, direitos fundamentais e justiça socioambiental, com foco em reparação e transparência institucional. Integra a RENAP (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) e a ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)
Publicado em 14/12/2025 às 10h00

Na noite de 9 para 10 de dezembro, o Brasil assistiu a um espetáculo que não pode ser naturalizado. Em poucas horas, o Senado aprovou a PEC do marco temporal, restringindo direitos originários dos povos indígenas à ocupação em 5 de outubro de 1988, e a Câmara dos Deputados aprovou o chamado PL da Dosimetria, que reduz drasticamente as penas para crimes de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito.

Como se não bastasse, no mesmo dia, jornalistas foram expulsos do plenário e o sinal da TV Câmara foi cortado. Um apagão informacional em plena votação — censura que fere o princípio da publicidade e a liberdade de imprensa.

O marco temporal: um retrocesso civilizatório

A PEC aprovada pelo Senado afronta o artigo 231 da Constituição, que reconhece os direitos originários dos povos indígenas às suas terras, independentemente de marcos históricos. A tentativa de fixar 1988 como corte ignora expulsões, deslocamentos forçados e esbulhos renitentes. É uma anistia fundiária disfarçada de norma constitucional. Além de violar a jurisprudência do STF, a medida colide com compromissos internacionais como a Convenção 169 da OIT. O resultado? Mais violência no campo, mais grilagem, mais vulnerabilidade para quem já carrega séculos de expropriação.

A dosimetria que normaliza o golpe

Na madrugada seguinte, a Câmara aprovou um projeto que, na prática, barateia a punição para ataques ao coração da democracia. O PL da Dosimetria unifica penas, permite redução de até dois terços para quem agiu em “contexto de multidão” e autoriza progressão após apenas 16% da pena, inclusive com remição em prisão domiciliar. Com isso, a pena do ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje fixada em 27 anos e 3 meses, pode cair para pouco mais de dois anos em regime fechado. A mensagem é clara: a tentativa de golpe passa a ser tratada como infração menor, quase simbólica. É a normalização da exceção.

Censura no Parlamento: quando a luz se apaga

O episódio que sintetiza a gravidade do momento ocorreu durante o protesto do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ). A Polícia Legislativa expulsou jornalistas e assessores das galerias e cortou o sinal da TV Câmara. Entidades como Fenaj, Abraji e ANJ classificaram o ato como censura. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos falou em “grave violação” e lembrou que a publicidade é princípio constitucional. Em uma democracia, não se apagam câmeras para esconder decisões que impactam direitos fundamentais.

Glauber Braga é retirado à força após tentar ocupar cadeira de presidente da Câmara dos Deputados
Glauber Braga é retirado à força após tentar ocupar cadeira de presidente da Câmara dos Deputados. Crédito: Reprodução de vídeo

O padrão que emerge

Esses movimentos não são isolados. Revelam uma captura do processo legislativo por agendas que flexibilizam garantias constitucionais e reduzem a intolerância ao autoritarismo. Quando o Parlamento negocia direitos originários, suaviza penas para golpistas e silencia a imprensa, instala-se um regime de insegurança normativa. Democracias não desmoronam de uma vez; erodem por concessões sucessivas que transformam o intolerável em rotina.

Na noite em que o Senado limitou o passado dos povos indígenas e a Câmara barateou o futuro da nossa democracia, o Parlamento também apagou as luzes e silenciou as câmeras. É preciso nomear o que aconteceu: retrocesso, censura e banalização do autoritarismo. Ou enfrentamos esse processo, ou seremos vencidos por ele.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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