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É professora universitária, advogada, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e doutoranda em Estudos de Gênero pela Universidade de Lisboa

Dos Legendários às esposas troféu: como construir uma masculinidade saudável

A luta das mulheres ao longo dos tempos pela igualdade não pode ser esquecida, nem tão pouco ter retrocessos. As relações humanas devem pautar-se pela horizontalidade e não pela hierarquia ou subalternidade

  • Vanise Lima e Silva Cavalheiro É professora universitária, advogada, mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e doutoranda em Estudos de Gênero pela Universidade de Lisboa
Publicado em 06/05/2025 às 14h06

Dois movimentos que, não por acaso, acontecem de forma simultânea e são complementares em seus propósitos, ambicionam “a proteção” da família e se sustentam a partir do viés religioso.

Os Legendários consistem em um movimento masculinista, e, de acordo com o site oficial do movimento, “busca a transformação de homens para que encontrem sua melhor versão” e ainda promete: “Devolvemos o herói às suas famílias”.

Surgido em 2015 na Guatemala, o movimento Legendários foi criado pelo pastor Chepe Tupzu e encontrou terreno fértil em solo brasileiro, abarcando das igrejas históricas às neopentecostais.

Recentemente, Fábio Adriano Machado Cherini, de 44 anos, não resistiu e morreu no experimento realizado em Mato Grosso do Sul ao enfrentar uma trilha de 72h. Uma fatalidade?! Para os organizadores, sim, inclusive afirmam que os participantes precisam apresentar atestado médico que deve apontar aptidão para atividade física de moderada à alta intensidade, antes do evento.

De igual forma, tem viralizado nas redes sociais um movimento de mulheres jovens cristãs de classe média, que exaltam e promovem o desejo de se tornarem as “esposas troféus”, a partir do modelo “bela, recatada e do lar”: uma "tradwife". Elas exibem suas rotinas e questionam: “Vocês acham que uma esposa troféu não tem nada pra fazer? Academia. Cabelo. Unha. Filhos”. Mas todas contam com funcionárias para realizarem o trabalho “mais duro”, em sua maioria mulheres pobres e pretas.

E você, leitor (a,) pode estar pensando: cada um escolhe o que bem entende para si. De fato, quando há liberdade de escolha e igualdade de condições, isso pode ser considerado, mas precisamos olhar para o tema com as lentes da história e dos estudos de gênero.

A luta das mulheres ao longo dos tempos pela igualdade não pode ser esquecida, nem tão pouco ter retrocessos. As relações humanas devem pautar-se pela horizontalidade e não pela hierarquia ou subalternidade. Sob as lentes da história, não se pode esquecer que até os anos 90 a legítima defesa da honra era tese usual para justificar os feminicídios, que até 2009 o crime de estupro era considerado um crime contra “os costumes” e não contra a dignidade sexual de uma pessoa. Somente em 2005 a lei nº 11.106 vedou a possibilidade de o casamento com o estuprador anular a punição pelo crime de estupro.

Até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica era tratada como uma questão privada, uma “desavença familiar”, o que exigia a representação da vítima contra o agressor. Não era incomum que essa representação fosse posteriormente retirada, muitas vezes em razão da pressão exercida pelo próprio agressor.

A legislação de um país reflete seus valores, e não tem sido fácil ultrapassar os valores patriarcais que reforçam e justificam o domínio masculino sobre os corpos e sexualidade das mulheres.

Os papéis sociais de gênero são ensinados e aprendidos socialmente, e isso desde o fatídico “chá revelação”. Fatídico, porque as crianças deveriam ser livres (todas) e igualmente estimuladas às diversas brincadeiras, sejam elas sobre lógica, sejam elas relativas ao cuidado.

Mas não é assim que acontece. E basta entrar numa loja de brinquedos para perceber que quase a totalidade dos brinquedos “de meninas” giram em torno do cuidado (bebês, panelinhas, maquiagem, vassourinhas); ao contrário, os dos meninos estimulam aventura, diversão, velocidade (carrinhos, aviões, super-heróis). Os brinquedos das meninas giram em torno do espaço privado, os de meninos do público. Meninas devem se conter até mesmo quando riem, enquanto meninos devem se expandir.

Aventura, homem, trilha
Foto de homem em trilha. Crédito: Pixabay

Não é natural que 38% das meninas de 4 anos estejam insatisfeitas com seus corpos, conforme estudo realizado pela fundação australiana Pretty Foudation. O sistema capitalista também se vale do gênero para subjugar, lucrar, afinal mulheres insatisfeitas com sua aparência pessoal vão consumir mais produtos, procedimentos e serviços.

Não é natural que no Brasil, em 2024, a cada seis minutos uma pessoa tenha sofrido estupro, 62% das vítimas tenham até 13 anos e que tais abusadores estejam dentro de suas casas. Não podemos achar natural que a cada 17 horas uma mulher seja morta em razão do gênero, segundo a Agência Brasil.

Os homens devem se reunir sim, mas para refletirem sobre como poderiam construir masculinidade(s) mais saudáveis para si e para com as pessoas com as quais se relacionam, como já fazem grupos como Man Talks em Portugal, Hombres Tejedores no Chile e o Projeto MEMOH no Brasil, entre tantos outros.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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