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É jornalista e escritora

As balas que escolhem alvo e cor

A dor de um país que normalizou a morte de seus filhos negros e pobres, enquanto o Estado se ausenta onde deveria proteger e aparece apenas para atirar

  • Isa Colli É jornalista e escritora
Publicado em 03/11/2025 às 13h30

Ainda estou estarrecida. O que ocorreu nos complexos do Alemão e da Penha não pode ser descrito apenas como uma “operação policial”. Foi uma chacina, mais uma, que parte da sociedade e das autoridades tenta naturalizar. Na última contagem à qual tive acesso, 121 vidas foram arrancadas. Quase todas com a mesma cor de pele, o mesmo CEP, a mesma ausência de oportunidades. E é provável que esse número seja ainda maior.

As vítimas não são estatísticas. São jovens negros, pobres… muitos deles sem perspectiva de futuro. Em vez de arte, cultura, educação de qualidade e inclusão, encontraram a morte. E junto dela, o silêncio institucional, a ausência do Estado onde ele mais deveria estar presente. Ou melhor: a presença perversa de um Estado que aparece apenas para autorizar o disparo, sem planejamento, sem critério, sem humanidade.

Polícia do Rio cumpriu 20 dos 100 mandados de prisão da megaoperação
Polícia durante a megaoperação no Rio de Janeiro. Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil

O discurso oficial insiste em dizer que a polícia combate o tráfico, e o tráfico, de fato, precisa ser combatido. Mas é preciso dizer com todas as letras: o tráfico não mora apenas no morro. Ele veste terno e gravata, financia campanhas, lava dinheiro em grandes empresas e movimenta fortunas. Ainda assim, a força do Estado mira sempre para cima, para o alto do morro, onde vivem os pretos e os pobres. Os verdadeiros barões do crime seguem intocados, protegidos pela distância social e pela cumplicidade silenciosa de quem finge não ver.

O descaso dos políticos e a omissão do poder público abriram espaço para que o tráfico se tornasse o administrador de territórios abandonados. Onde o Estado é ausente em direitos, o crime se faz presente em poder. Não se trata de defender criminosos, mas de defender a justiça. A lei precisa valer para todos. O Estado não pode ser, ao mesmo tempo, juiz e executor, especialmente quando escolhe suas vítimas pela cor da pele e pelo lugar onde elas moram. Talvez porque seja mais fácil subir o morro do que um elevador de luxo.

Ao assistir às cenas dessas operações, lembrei-me de trechos do meu livro “Alice — Amor, perda e renascimento”. Cenas que escrevi inspirada na invasão da Rocinha, quando a busca por um traficante transformou a comunidade em campo de guerra. Recordo-me da imagem de uma jornalista que se escondeu sob uma kombi para se proteger dos projéteis. A ficção, infelizmente, se confunde com a realidade. As mesmas vielas marcadas pela dor, pelo medo e pela ausência de esperança que descrevi na obra agora se revelam diante de nós, não nas páginas de um romance, mas nas ruas do Rio, nas telas, nas redes.

Estamos diante de uma barbárie travestida de ordem. Não há ordem quando o sangue escorre pelas vielas. Não há paz quando o Estado se torna o algoz do próprio povo.

É urgente que o Brasil desperte, não para justificar a violência, mas para se indignar até que ela acabe. Que cobre investigações sérias, políticas públicas reais e medidas eficazes de combate ao tráfico, que comecem onde o dinheiro circula, não onde a pobreza é empurrada.

Enquanto as balas continuarem escolhendo cor, o país seguirá escolhendo quem pode ou não viver.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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