Autor(a) Convidado(a)
É advogado trabalhista

A falsa promessa de autonomia do nanoempreendedorismo

Estamos retornando, gradualmente, a um cenário pré-direitos sociais, no qual o trabalhador era considerado um mero agente econômico isolado, sem qualquer rede de proteção

  • Bruno Milhorato É advogado trabalhista
Publicado em 22/07/2025 às 16h42

O discurso que embala o chamado "nanoempreendedorismo" é sedutor. Vende-se a ideia de que qualquer pessoa, com um celular e força de vontade, pode se tornar um empreendedor de sucesso. Por trás dessa narrativa, no entanto, esconde-se uma perigosa ilusão: a falsa autonomia individual, que ignora a profunda assimetria de poder entre trabalhadores e grandes plataformas ou tomadores de serviço. Trata-se de um novo ciclo de precarização, agora revestido de linguagem motivacional e neoliberal.

Esse fenômeno representa uma regressão histórica. Estamos retornando, gradualmente, a um cenário pré-direitos sociais, no qual o trabalhador era considerado um mero agente econômico isolado, sem qualquer rede de proteção. A lógica neoliberal que sustenta esse processo busca desconstruir os avanços civilizatórios alcançados pelos direitos fundamentais de segunda geração, especialmente o direito ao trabalho digno.

O Estado e a armadilha rrrecadatória

Outro componente dessa engrenagem é a insaciável ânsia arrecadatória do Estado brasileiro. Em um primeiro momento, criou-se a figura do Microempreendedor Individual (MEI) que, sob o argumento de formalização, trouxe para dentro do sistema uma massa de trabalhadores informais. Agora, com o avanço do nanoempreendedorismo, o Estado volta seus olhos para novas camadas de trabalhadores precarizados, visando ampliar a base de arrecadação.

O paradoxo é evidente: o mesmo Estado que enfraquece a legislação trabalhista e incentiva formas atípicas de contratação tenta compensar a perda de arrecadação tributária e previdenciária expandindo sua rede de contribuintes entre os que menos têm capacidade contributiva.

A desconstrução da CLT e o preço da falsa liberdade

O discurso de que ter a "carteira assinada" (o emprego protegido pela CLT) é algo ultrapassado ou "engessado" serve apenas para fragilizar a percepção pública sobre a importância do vínculo formal. O trabalhador CLT, que antes era símbolo de segurança social, hoje é muitas vezes retratado de forma depreciativa, como alguém que se acomoda ou que tem "custo alto" para o empregador.

Essa desconstrução ideológica alimenta o ciclo de precarização. O resultado prático é um mercado de trabalho cada vez mais informal, porém mascarado por rótulos de "autonomia" e "empreendedorismo".

O impacto previdenciário: rumo a um colapso anunciado

O enfraquecimento do trabalho formal traz sérias consequências para a sustentabilidade do sistema previdenciário. A migração em massa para regimes precários, com baixa ou nenhuma contribuição previdenciária, compromete a arrecadação e, consequentemente, a capacidade do Estado de honrar benefícios futuros.

Se o atual modelo de precarização continuar, corremos o risco de replicar, no século XXI, o cenário de desamparo social vivido no início do século XX: idosos, viúvas, órfãos e trabalhadores incapacitados sem qualquer cobertura previdenciária mínima.

A lógica é simples: menos empregos formais hoje significam menos arrecadação para pagar aposentadorias, pensões e benefícios por incapacidade amanhã.

FGTS e o risco sistêmico para a economia

Além da previdência, outro pilar ameaçado é o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Com a redução do número de trabalhadores formais, as contribuições ao FGTS caem drasticamente. Isso afeta diretamente o financiamento de setores estratégicos, como a construção civil.

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS. Crédito: Bruno Rocha/Fotoarena/Folhapress

O FGTS é uma das principais fontes de recursos para programas habitacionais e de infraestrutura. Seu esvaziamento pode desencadear uma crise no mercado imobiliário, com redução de investimentos, aumento do desemprego no setor da construção e agravamento do déficit habitacional.

O desamparo da família trabalhadora

Por fim, há o aspecto humano e social. O nanoempreendedor, travestido de empresário, na prática, está desprotegido diante de qualquer infortúnio. Em caso de doença, acidente ou morte, sua família ficará desamparada. Sem direito a pensão, sem auxílio por incapacidade e sem acesso a benefícios assistenciais, essas famílias terão como único recurso as redes informais de solidariedade – quando existirem.

A proteção previdenciária não é apenas um direito individual. Ela é, antes de tudo, um instrumento de proteção social à família e à comunidade. Fragilizá-la é condenar milhões de pessoas ao desamparo.

O custo social da ilusão

O nanoempreendedorismo, como tem sido propagado, é uma armadilha social, econômica e política. Em vez de representar uma forma real de emancipação, ele aprofunda a desigualdade, desmantela os sistemas de proteção social e agrava os riscos macroeconômicos.

A defesa do trabalho decente, formal e protegido é, mais do que nunca, uma necessidade urgente. É preciso enfrentar essa narrativa de falsa liberdade e construir um modelo de desenvolvimento que respeite os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana e a sustentabilidade das políticas públicas.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Fgts INSS Empreendedorismo CLT Empregos

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.