A tentativa de isolar a administração pública como uma ciência autônoma, livre da influência do Direito Constitucional, é uma busca que soa acadêmica, mas ignora a realidade institucional brasileira. No Brasil, a gestão pública é, essencialmente, uma extensão do projeto constitucional. Nesse aspecto, insistir na ideia de uma ciência administrativa "pura", descolada do ordenamento jurídico, é um erro metodológico — e, mais do que isso, político.
Essa ambição de autonomia não é exclusiva. O próprio Direito já flertou com a ideia de uma teoria pura, como propôs Hans Kelsen no século XX, ao sugerir um sistema jurídico isolado de influências sociais, morais e políticas. A proposta atraiu intelectuais pela sua lógica interna, mas mostrou-se incapaz de lidar com as complexidades do mundo real.
A lição vale também para a administração pública. Raadschelders, referência mundial na área, defende que, em vez de buscar uma teoria unificadora, devemos reconhecer seu caráter multidisciplinar e aceitar a inevitável interdependência entre gestão e normatividade.
No Brasil, essa interdependência está cunhada na Constituição Federal de 1988. Os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37) não são meras retóricas. Eles são normas jurídicas que exigem da administração pública um compromisso com o interesse público, com a justiça social e com a dignidade da pessoa humana.
A Constituição também estabelece a estrutura político-administrativa do Estado, bem como os objetivos da República, que incluem garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais — metas que demandam a execução eficiente e integrada das atividades administrativas. É por meio dessa atividade que o Estado implementa políticas públicas e promove a justiça social. Ignorar essa realidade significa negar o próprio fundamento da legitimidade administrativa.
A tentação de pensar a administração pública como uma técnica neutra, voltada apenas à eficiência, ignora que toda ação administrativa carrega escolhas de valor — e essas escolhas devem obedecer ao projeto democrático e jurídico traçado pela Constituição de 1988.
Por isso, insistir numa administração pública “autônoma”, como se fosse uma ciência imune, é repetir o erro da Teoria Pura de Kelsen. A Constituição não limita a administração pública: ela a funda. Quanto antes essa realidade for aceita, mais produtivo será o debate sobre os rumos da gestão pública no Brasil.
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