Uma longa estrada precisa ser percorrida por quem quiser chegar até a comunidade de São Pedro, em Ibiraçu, no Norte do Espírito Santo. Mas nem se compara ao caminho de obstáculos que seus moradores enfrentaram para ter o reconhecimento como quilombo e manter, na região, suas tradições e cultura.
Ao resistirem e estabelecerem por ali seu território, fortaleceram vínculos e criaram novas rotas, particularmente após a implantação da Padaria Quilombola, comandada só por mulheres. O negócio é um dos braços da associação, que dá os primeiros passos para criar uma cooperativa.
De lá, saem pães, biscoitos e diferentes tipos de massa para atender escolas do município e também de Fundão e João Neiva, por meio de programas da agricultura familiar, segundo conta a auxiliar administrativo da padaria, Jamile Vicente.
"A gente faz as vendas por nossos blocos (de produtores). A gente entra na licitação, vê a quantidade que pode fornecer e vai dividindo por bloco das meninas da padaria", comenta a jovem de 22 anos, da segunda geração à frente do negócio.
Apesar da função administrativa, Jamile também coloca a mão na massa — literalmente — com a mãe, Marly Vicente, e a tia, Odete Aleprandi, e outras mulheres para darem conta das demandas de produção da padaria que, além fornecer para escolas, atende a área de assistência social com itens para cestas básicas, ou por encomenda no telefone 99605-7709.
"A gente faz macarrão, capelete, biscoito para repassar para as pessoas carentes comerem. E, para a escola, a gente faz biscoitos, três tipos, e pão", lista Marly.
Por dia, segundo afirma Jamile, as mulheres "desmancham" 100 quilos de farinha de trigo na preparação de pães, por cidade, sem contar a produção de biscoitos. É um trabalho árduo, com uso de algum maquinário, mas que exige bastante das padeiras e biscoiteiras.
"Geralmente, as pessoas veem que trabalhos pesados são para homens, que ser padeiro é coisa de homem. Então, a gente meio que quebra esse tabu", analisa Jamile.
Jamile Vicente
Auxiliar administrativo da Padaria Quilombola
"As mulheres estarem à frente mostra que elas podem estar no lugar que quiserem estar e isso é muito importante"
Comunidade quilombola de São Pedro, em Ibiraçu
Apoios
Para a estruturação da padaria, as mulheres receberam variados apoios, desde a reforma do imóvel por intermédio da "Amigos da Justiça" até a consultoria do Sebrae, passando por emendas parlamentares com a destinação de recursos e equipamentos.
"Nosso trabalho é voltado para a área de gestão da padaria. Entre as atividades, fizemos consultoria para formação de preço, design de embalagem, rotulagem. O Sebrae tem um programa plural para atender essas comunidades, trabalhando essa questão da geração de renda e para a própria subsistência", pontua Geísa Almeida Moreira, analista do Sebrae de Aracruz.
A instituição também oferece cursos e leva as mulheres para a participação de eventos, como a Panshow (feira de panificação). "Elas pegam outras experiências, entendem como funciona cada tipo de farinha, veem novas possibilidades. Da última vez, a dona Odete viu um tipo de pão diferente e disse que chegaria à padaria e iria fazer. Elas se empolgam com receitas novas e podem diversificar seus produtos", afirma Geísa Moreira.
A "Amigos da Justiça", por sua vez, é uma entidade de terceiro setor que, além de viabilizar a reforma de um antigo laticínio para que se transformasse na padaria, oferece às mulheres apoio na preparação de editais para que participem de licitações e, assim, tenham acesso a recursos necessários ao funcionamento do estabelecimento.
"Elas têm uma máquina que querem comprar, vamos inscrever num edital para ganharem a máquina. Qual é o nosso orgulho? Elas já foram participar de programas em João Neiva, Aracruz, Fundão, Ibiraçu. É um case de sucesso porque identificamos nelas essa garra, essa identidade que é delas, um empoderamento que é só delas para fazer funcionar a única padaria no Brasil em um quilombo, e comandada por mulheres", ressalta a presidente da instituição, Pollianny Siqueira Silva Santos.
Resistência
As mulheres quilombolas têm, em si, a marca da resistência que se reflete nesse sucesso da padaria. "Eu tenho muito orgulho porque, para ser a comunidade que a gente é hoje, teve muita persistência, as lutas que a gente teve que enfrentar, não desistir, né? Mesmo com tantas dificuldades, elas continuaram, não desistiram, foram atrás. Eu acho isso muito importante porque, se elas tivessem desistido, a gente não seria o que a gente é hoje", valoriza Jamile.
Uma luta que atravessou mais de um século, segundo conta Dalivia Bento Bulhões, historiadora e servidora na Secretaria de Territórios e Sistemas Produtivos Quilombolas e Tradicionais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (Seteq/MDA).
O primeiro contato dela com a comunidade de São Pedro foi quando foi contratada para fazer o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas no processo de regulamentação fundiária, definido no decreto 4.887/2003. Havia uma equipe multidisciplinar, entre os quais biólogos, geógrafos, advogados e antropólogos, na preparação desse documento que daria aos moradores, posteriormente, o primeiro título de quilombo do Espírito Santo.
"No início dos anos 2000, os conflitos estavam muito acirrados nessa localidade. Houve uma participação do Conselho Estadual de Direitos Humanos e foi-se percebendo que havia violação material e imaterial por fazendeiros locais", pontua Dalivia Bulhões.
Esse cenário ainda está na memória dos mais antigos da comunidade de São Pedro. "Tinha o filho do advogado que era muito abusado. Ele queria o pátio da igreja, não sei para fazer o quê, mas ele queria. Um belo dia, quando a gente fincou o mastro (da festa de São Benedito), ele pegou o carro, bateu e quebrou. Outro dia, minhas irmãs limpando a igreja, ele pegou o revólver, o machado, foi para dentro da igreja e quebrou toda. Só ficou um banco", lembra Marly Vicente.
Odete Aleprandi diz que não ficou nem um banco para contar a história. "Ele arrebentou a igreja todinha. Quebrou tudo, tudo, tudo. Aí, nós chamamos a polícia."
Resgate
Para fazer o RTID, Dalivia Bulhões diz que a equipe foi construindo com a comunidade um resgate histórico, por meio de entrevistas, conversas e o cruzamento de documentos oficiais. A historiadora recorda-se que, num relato de 2004, tomou conhecimento que tinham proibido a festa de São Benedito na região, uma celebração que já acontecia por lá havia 50 anos. "Nesse contexto, aceleraram o processo de regularização fundiária, mas o conflito já existia na região desde o início do século XX."
Dalivia Bulhões conta que o movimento de formação da comunidade é originário do final do século XIX, logo após a abolição da escravatura, quando os negros libertos começaram a migrar em busca de terras. Muitas famílias saíram de Minas Gerais, de Cachoeiro de Itapemirim, da Serra e de Santa Leopoldina para formar os núcleos familiares na região de Ibiraçu. Pelos registros históricos, eles chegaram antes da formação das colônias de imigrantes italianos, que foram favorecidos com políticas afirmativas pelo governo da época. Eles receberam incentivos para se instalar nas terras, ao contrário dos negros, a quem nada foi oferecido.
"A chegada da imigração estrangeira é tardia, os negros já estavam lá. Mas, com a política da época, eles foram perdendo seus territórios, e não só a terra, mas a questão de saberes e fazeres. Áreas comuns de pesca e caça foram desmatadas. Os imigrantes recebiam lotes, a família ia crescendo, eles iam invadindo, como se a terra não tivesse dono. Então, só com o decreto (de 2003) foi criada a base legal para começar a fazer esses relatórios e o processo de regularização fundiária de quilombos", pontua a historiadora.
O RTID de São Pedro ficou pronto em 2006, mas somente em 2011 foi publicado o decreto com a titulação. "Quando uma comunidade inicia um processo de regularização, é um ato político e também um ato de conquista coletiva porque tem uma forma de organização de reconhecimento de um modo de vida, de organização dos nossos ancestrais negros até os dias de hoje. Quando consegue o reconhecimento da terra, é uma segurança jurídica para não ter seus direitos violados", ressalta Dalivia Bulhões.
A socióloga Jaqueline Sanz, que também trabalhou no RTID, ressalta que o Espírito Santo tem 54 comunidades quilombolas autodefinidas (que se identificam como tal), 36 certificadas pela Fundação Palmares e uma titulada, que é a São Pedro.
Jaqueline Sanz
Socióloga
"Depois que uma comunidade tem a titulação da terra, é como se abrisse um grande leque de oportunidades para acessarem políticas públicas"
A superintendente do Incra no Espírito Santo, Maria da Penha Lopes dos Santos, explica que, para receber o título, o primeiro passo é a comunidade se declarar quilombola, por meio da vivência, da cultura, da arte, da culinária. Geralmente, segundo ela, são áreas com ancestralidade, que historicamente sabe-se que o território pertence àquele povo.
Após autodeclaração de identificação dos povos, e também da delimitação do território, do ponto de vista do governo, a etapa seguinte é de certificação pela Fundação Palmares. Somente, então, abre-se um processo no Incra que, além da função de governança fundiária, cuida da parte do estudo antropológico do território para a produção do RTID, como foi feito na comunidade de São Pedro.
"A partir desse relatório, é feita a publicação dele e, se houver pessoas que não são quilombolas no território, a gente desapropria. Faz uma avaliação do valor da terra para desapropriar", afirma Maria da Penha.
A desapropriação é determinada por decisão judicial e os proprietários desapropriados ainda têm um tempo de contestação. Com essa etapa concluída, com o território reconhecido e delimitado, o presidente da República publica o decreto para entregar o título da terra à associação que representa a comunidade. O título é coletivo, não individual. Em São Pedro, 33 famílias foram beneficiadas.
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